“Luto não é suficiente para expor toda a dor”
A ministra Cármen Lúcia, do Supremo Tribunal Federal (STF), acredita que a pandemia do novo coronavírus, apesar de toda a dor que a acompanha, traz um momento de reflexões profundas e de oportunidade de mudança.
“Houve agora um encontro que estava marcado com a forma de viver que adotamos. A pressa que nunca permitia ter tempo para ouvir o outro, para estar com o outro, um nomadismo que não era para ver e para aprender, mas apenas para andar sem rumo e sem compromisso”, discorre, nesta entrevista à coluna.
Respeitando o isolamento e entregue ao home office, que obrigou a mudanças significativas, como o aumento da carga de trabalho, ela acredita que é impossível ao ser humano não dar uma guinada no modo de ser e de ver as coisas. A pandemia abriu os olhos. “Para os que teimavam em não ver a fome, ela passou a ser dor; para quem negava a violência contra mulheres, crianças, negros, o grito dobrou o timbre e mostrou a desigualdade enorme em nossa sociedade. A fome e o desemprego sentaram-se à mesa de todos os que têm olhos para ver e sensibilidade para sentir”, diz.
Para ela, não é aceitável que o ser humano não se sinta comprometido com a saúde e o bem-estar de todos os outros. E, apesar de toda a desolação do momento, guarda otimismo e esperança: “O impulso de vida é mais forte que a dor; e a humana dignidade é mais forte que qualquer desumana adversidade. A humanidade constrói-se e reconstrói-se, não importa a força da corrente destrutiva contrária. E é na humanidade que acredito”.
Como a pandemia pode reforçar os valores humanistas da sociedade?
Há que se ter esperança de que os valores da solidariedade e da responsabilidade sobrelevem e passem a fazer parte da vida de todos nós e em todos os comportamentos pessoais e sociais. Esse vírus tem um altíssimo grau de transmissibilidade. Essa transmissibilidade tão elevada acarreta também alto nível de letalidade. Logo, cada pessoa tem responsabilidade consigo mesma, mas também com os outros. Dispondo dessas informações, que a imprensa e todos os meios de comunicação cumpriram a tarefa nobre de divulgar para informar e para ensinar, e, no caso brasileiro, com a tragédia de mais de meio milhão de mortos e com todos os brasileiros sensíveis e responsáveis enlutados pela dor de sua perda e da perda dos outros, não é aceitável que um ser humano não se sinta comprometido com a saúde e o bem-estar de todos os outros. E esse compromisso decorre da solidariedade, sem a qual a convivência social não pode ser tida como verdadeiramente civilizada. A dignidade de um conjuga-se com a solidariedade de todos. Cuidado é expressão de bem-querer, mas principalmente de responsabilidade.
É possível ter um olhar poético diante desse momento difícil?
É necessário, por isso não pergunto se é possível. Tudo o que se faz necessário há que se tornar possível. O possível acontece de qualquer jeito, de algum jeito. A humanidade põe-se pelo olhar além do que se vê na noite mais escura ou na tarde mais clara. É preciso resistir ao vento mais tormentoso e construir a candeia que alumia e aquece, mesmo que tenuemente. Outras luzes nascem da pequena chama de esperança mantida.
O que mudou na sua rotina neste ano de pandemia?
Mudou a forma de trabalhar e a intensidade do trabalho aumentou muito. O Supremo Tribunal (como todos os órgãos do Judiciário) teve de refazer rotinas (passando a adotar o teletrabalho para quase todos os servidores, a fim de garantir o distanciamento social necessário), criar protocolos sanitários e comportamentais para o atendimento dos cidadãos, dos advogados, do acesso das partes aos juízes e aos processos.
A necessidade de atender partes e advogados, por exemplo, passaram a ser quase sempre por videoconferência. As sessões do Tribunal também. Foi necessário fazer essa adaptação em casa e nos gabinetes de todos os juízes. A mudança foi enorme.
E na vida pessoal, também, a mudança não foi pequena. Ao lado de um grau de exigência de trabalho maior, sobrevieram as reuniões e lives que se multiplicaram. O contato na família foi limitado pela necessidade de distanciamento e as relações afetivas familiares aprenderam os abraços virtuais. Mas não há tela — a mais perfeita — que substitua o olho humano. Não há cobertor que se compare ao calor do abraço. Fica a lição do tanto que precisamos uns dos outros. E como é bom estar com os nossos afetos sem deixar sempre tudo para depois.
Como ficam as grandes questões da humanidade durante a pandemia?
Acho que apenas ganharam urgência maior, relevo em questões que alguns teimavam em não ver. Não sei se mudam. Houve agora um encontro que estava marcado com a forma de viver que adotamos. A pressa que nunca permitia ter tempo para ouvir o outro, para estar com o outro. Um nomadismo que não era para ver e para aprender, mas apenas para andar sem rumo e sem compromisso.
O ser humano ficou mais que individualista, muito egoísta. Para os que teimavam em não ver a fome, ela passou a ser dor; para quem negava a violência contra mulheres, crianças, negros, o grito dobrou o timbre e mostrou a desigualdade enorme em nossa sociedade. A fome e o desemprego sentaram-se à mesa de todos os que têm olhos para ver e sensibilidade para sentir.
O momento exige resiliência e ativismo solidário. Pessoalmente, engajou-se em alguma atividade coletiva a distância?
Mantive as que tinha antes, especialmente em relação a mulheres mais vulneráveis e àquelas presas ou egressas da prisão. Mas aprendi, desde cedo, que a mão direita não precisa saber o que a esquerda faz. Até porque as pessoas precisam muito mais do que sou capaz de fazer em atividades com os outros.
Que ensinamento este momento nos deixa?
Não seria capaz de retirar lições de uma experiência ainda em curso. Mas acho que talvez seja possível vislumbrar a urgente necessidade de repensarmos nossa convivência (acho que, em muitos casos de “desvivência”, se existisse essa palavra). Especialmente, para sermos capazes de pensar, socialmente, formas de contribuir, efetiva e diretamente, para superar as desigualdades que são chagas sociais graves em nosso país e que ficaram mais dolorosamente presentes e agravadas nesta passagem.
Como a senhora vive em Brasília depois de mais de três décadas de convivência? Como “sente” a cidade?
Brasília é uma cidade plural, gente que chega de todos os cantos do Brasil, que se reúne e depois se une e transforma ideias, porque mostra culturas muito diferentes. Também uma cidade educada pela forma de sua criação (por exemplo, o trânsito, o cidadão que assinala, e o carro para) o que é exemplar.
Afora o circuito do Poder, quais os cantos e recantos de Brasília que a senhora curte?
Não saio muito. Sou caseira por natureza. Fora o Supremo Tribunal, não ando muito. Antes ia ao Parque da Cidade para caminhadas, mas, com a pandemia, tudo teve de se manter fechado. Fiquei quieta e isolada fisicamente, como era necessário. O que aprecio mesmo é receber (ou voltar a receber, quando puder) as pessoas de que gosto em minha casa.
Vai que cola
A manobra do Palácio do Planalto de jogar no colo dos governadores a conta da tragédia da pandemia terá mais um lance importante esta semana. Na quarta-feira, no STJ, entra em pauta a análise do recebimento da denúncia apresentado pela sub-procuradora-geral da República Lindôra Araújo contra o governador do Amazonas. Se a Corte Especial receber a denúncia, deve analisar o pedido de afastamento de Wilson Lima do cargo. Vai ser o segundo caso de governador acusado de irregularidades na gestão da pandemia levado a julgamento no STJ. Witzel foi afastado pelo tribunal e depois perdeu o cargo por impeachment. A fritura de mais um chefe do executivo estadual é tudo que o presidente Bolsonaro sonha: reforça o discurso de que a inoperância de governadores acabou resultando no desastre das mais de 500 mil mortes. A ideia é ampliar o alvo da CPI para os estados e tentar atenuar o depoimento bombásticos dos irmãos Miranda.
O som ao redor
A vice-presidente da Academia Inclusiva de Autores Brasilienses, Noeme Rocha da Silva, se queixa do descaso do poder público na manutenção dos sinais sonoros nas faixas de pedestre. Segundo ela, dos mais de 250 equipamentos afixados em semáforos do Distrito Federal, só um na área central de Taguatinga está funcionando normalmente: “vocês não fazem ideia do desespero, da aflição que é atravessar uma avenida sem enxergar. É muito descaso, ficamos à mercê da sorte”, reclama.
Corre, Monteiro, corre
O presidente da Comissão Especial da PEC 32 da Reforma Administrativa, deputado Fernando Monteiro (PP-PE), vai procurar o presidente do Senado, Rodrigo Pacheco, para que haja desde já uma interação de senadores com a discussão em torno da proposta do governo. Monteiro entende que é necessário ganhar tempo para que a reforma seja aprovado pelas duas Casas do Congresso Nacional até o final do ano.
É bom mesmo acelerar
O episódio do depoimento do servidor de carreira Luís Ricardo Miranda, do Ministério da Saúde, resistindo às pressões de superiores para a rápida aprovação do contrato com a Covaxin, será uma poderosa arma da oposição na Comissão Especial. Vão usá-lo como exemplo de como é importante os servidores terem estabilidade.
Aposentado, de 84 anos, se forma em Brasília
Renê Naves fez filosofia e agora dá continuidade aos estudos com uma pós-graduação. “Aprender é algo que você não pode parar nunca. Quem desiste do saber já está morrendo aos poucos”, disse a Maryanna Abreu, estagiária do Eu,Estudante.
Ritmo lento
O escândalo da Covaxin deve paralisar a tramitação de polêmicos projetos no Congresso Nacional. Entre eles, o que estimula a concentração de mercado, beneficiando gigantes de ônibus. Tramitando em regime de urgência, com apoio de líderes do Centrão, o projeto vai ficar em banho-maria.
Tempo-rei
Bolsonaro não deve encaminhar tão cedo para o Senado a indicação do novo ministro do STF. O mais provável é que o governo espere o clima tenso da CPI da Covid serenar. André Mendonça, o favorito nas bolsas de apostas, ganha mais fôlego nas negociações.
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