Crônica da Cidade

Um conto antigo

Alexandre de Paula
postado em 02/07/2021 22:30

Tardinha, se o sol soubesse, duraria para além do que é comum. Moço, tão moço, com uns olhos cheios de desejo, mas daquele desejo bonito de quem só busca o que precisa. O rapaz queria era moradia, rua de terra que fosse, pra, noitinha, sentar do lado de fora e mirar nas estrelas, feito fazia com as pernas da moça. Depois, pegar a moça no colo, levar para dentro e passear pelas estrelas do Cruzeiro do S0ul. Isso tudo ainda não era seu, só em sonho, mas, sendo sonho, a alegria acaba e faz doer aquilo que a gente, não tendo, pensou que tinha.

E foi não querendo nada mais que o moço muito moço pregou aquela maldita placa anunciando serviço de limpeza e construção de poços (com erro de escrita, que ninguém naquelas bandas possuía estudo) na carroça velha que o pai o fazia, como bicho adestrado, puxar. De onde tirou ideia ninguém sabe, porém, mesmo que ele só de vista é que conhecesse o ofício, achou que dava conta. Arranjou ferramenta, corda e se lançou.

No dia em que Deus se esqueceu de mandar o sol brilhar um tanto mais no tempo, o moço viu a moça cedo. Baixou a cabeça, que um chapéu de palha velho cobria, como de costume, por vergonha mesmo e não por cumprimento. Quando juntasse dinheiro e pudesse qualquer agradinho comprar, teria coragem pra olhar bem naqueles olhos brilhosos. Se ele soubesse que o agrado que a moça mais queria era conhecer a voz do moço e que aquele sorriso sem fim era pra ele, talvez não esperasse tanto. Mas esperou.

E o moço saiu, antes das seis da tarde, corda velha enrolada ao corpo cansado. Cruzou as ruas quase vazias, exceto pela gente na calçada olhando o tempo passar, e cismou que aquele dia, tava escrito, era o ponto donde viria um novo homem. O moço nem olhou pro céu, pro sol que ia, de pouco em pouco, se escondendo. Chegando, só se lembrou foi de fazer uma reza, que era pra Deus não se esquecer do que Ele mesmo escreveu. O moço desceu fundo agarrado com a corda de nylon. Sozinho, no escuro sem fim.

Do moço ninguém mais sabia, nem pai, nem mãe, nem irmão. Tudo esperando quem desse notícia. De noite assim, sumido no fim do mundo. Ele que nunca saía sem dar recado até sendo motivo de trabalho. O coração da mãe batendo que nem tambor endoidecido. O pai suando. E o pai lembrando, o pai tentando lembrar. E a placa, a maldita placa pregada na carroça. O pai lembrou.

No meio do povo, o assunto correu e não houve quem não fosse ver mesmo tarde da noite. Moço perdido e a última lembrança de quem o viu já de tardinha: o moço descendo rápido, na corda, a corda presa no toco e o moço descendo, e a corda descendo e o moço lá. Mas, ninguém que, com certeza, soubesse. O moço bem podia estar pelo mato, caçando bicho que nem gostava de fazer, às vezes, no lugar de estar ali caído pra dentro daquele mundaréu de água ajuntada. Porém, mesmo assim, toda gente da cidade lá. Juntos em volta daquele vão.

A moça, derrubando lágrima, olhou pra dentro do poço. Aí, só o breu e o som da gota antes grudada ao seu rosto colidindo com as águas fundas. Noitinha, se o sol soubesse, teria durado para além do que é comum.

 

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