Crônica da Cidade

Digressão no parque

Correio Braziliense
postado em 11/07/2021 23:37 / atualizado em 11/07/2021 23:38

Era uma vez, num reino bem, bem distante, uma sociedade que se organizava sem disputas para alimentar e cuidar de todos os seus moradores. Salões amplos podiam ser acessados por vias formadas em túneis estreitos, mas de paredes sólidas. No percurso entre a fonte de alimento e o local de armazenagem, todos se enfileiravam em total sintonia. Os que iam, marchavam constantes e determinados em busca do pão de cada dia. Os que voltavam, carregavam sobre os ombros muito mais que o equivalente ao peso do corpo. Não se ouvia, porém, nenhuma reclamação. A harmonia era, e é até hoje, visível naquela comunidade.


A cronista se perdeu num devaneio e até de estilo trocou, deve estar pensando o leitor. Talvez seja verdade mesmo, pois pareceu que o conto — com esse princípio clássico das histórias de fadas — fosse o mais adequado para descrever o sentimento de confusão e de impotência que tomou conta de mim ao observar uma cena banal, cotidiana, durante um passeio pelo parque.


Andávamos pelo gramado há apenas cinco minutos quando, de longe, avistamos uma elevação no meio do descampado vazio e um risco que cortava pelo meio, em traço assimétrico, o monte de terra coberto por grama. Aquele traçado certamente era estreito demais para ser produto da ação humana, mas muito bem-feito para significar apenas um acaso da natureza.


Aproximamo-nos e lá estavam elas. Centenas, talvez milhares, de formigas, formiguinhas e formigonas enfileiradas, vivendo a cena que descrevi há pouco. A linha formada pelos insetos se estendia por vários metros, a perder de vista. No topo do monte, entravam no formigueiro para cumprir a tarefa árdua.
Por ali fiquei, observando a cena durante alguns instantes. E só conseguia pensar em como nós, seres evoluídos e com capacidade de reflexão, fomos incapazes de nos organizar para comprar, distribuir, aplicar e reaplicar doses de vacinas produzidas em tempo recorde com o objetivo de conter uma pandemia de poder avassalador. Viu só, como tudo se assemelha a um tradicional conto de fadas ou a uma trama de filme de ação?


Somos, de fato, bem diferentes das formigas. Escondemos por dentro de nossos corpos e mentes complexos as ideias que nos levam tanto à plenitude quanto à desgraça. Talvez nenhum ser vivo jamais sinta a alegria mais genuína do momento mais feliz da vida de um homem ou de uma mulher nascidos neste mesmo planeta. Certamente, também não sentirá a dor e a amargura devastadoras da situação mais triste e sofrida de alguém que caminhou pela Terra. Mas na brevidade daqueles minutos, minha vontade era de ser formiga. Ou formiguinha, ou formigona.

Notícias pelo celular

Receba direto no celular as notícias mais recentes publicadas pelo Correio Braziliense. É de graça. Clique aqui e participe da comunidade do Correio, uma das inovações lançadas pelo WhatsApp.


Dê a sua opinião

O Correio tem um espaço na edição impressa para publicar a opinião dos leitores. As mensagens devem ter, no máximo, 10 linhas e incluir nome, endereço e telefone para o e-mail sredat.df@dabr.com.br.

Tags

Os comentários não representam a opinião do jornal e são de responsabilidade do autor. As mensagens estão sujeitas a moderação prévia antes da publicação