Alma de cronista
Nesta longa estrada da vida jornalística, fiz muitos amigos culturais. Não frequento a casa deles e eles não frequentam a minha, mas temos conexões de afinidade e de interesse. Na verdade, o que nos une é o amor pela cultura, pelos grandes personagens, por Nelson Rodrigues, por Rubem Braga, Clarice Lispector, Carlos Drummond de Andrade, João Cabral de Melo Neto, entre outros.
E um desses amigos da cultura que ganhei de graça, só pelo fato de escrever crônicas, é Danilo Gomes. Ele foi jornalista, funcionário público, se aposentou, mas se considera, antes de tudo, cronista, dos sapatos até os cabelos. Tem alma de cronista, gosta de passarinhada cantando, de gentilezas, de gestos elegantes e de generosidades.
É muito bem-humorado, sempre que escrevo sobre a Legião Urbana, ele toma quase como uma provocação pessoal, embora os filhos sejam fãs de Renato Russo e da banda. Para espicaçar, digo a ele que talvez não tenha gostado da referência à Legião, pois aprecia um rock ainda mais pesado.
Sim, ele respondeu: sou mais radical que você, gosto do heavy metal, rock pesadão, doidão, com zoadas de calamidades alucinantes. Mas, logo emenda: mentira!!! mentira!!! Assume que é do tempo do canto gregoriano das missas em latim nos Mosteiros de São Bento do Rio, São Paulo, Olinda e Brasília. E da música de Bach, Vivaldi, Haendel, Rimsky-Korsakov & cia. “Meus ‘meninos’ (Rodrigo, 49, e Juliana, 47) é que curtiam a Legião Urbana e adjacências”.
Danilo é a memória viva da literatura brasileira moderna. Entrevistou, entre outros, Rubem Braga, Samuel Rawet e Adonias Filho. É extremamente pessoal, faz questão de escrever toda a correspondência à mão e, para encaminhá-la, o nosso Dom Quixote do cerrado encontrou um fiel escudeiro, o motoboy Qui Qui, conhecedor emérito do nosso quadradinho.
Qui Qui trouxe muitas encomendas ao condomínio onde moro, situado próximo a uma mata cerrada. Perguntei ao Danilo se o bravo motoqueiro havia topado com alguma onça. Danilo respondeu que Qui Qui vem armado com um arcabuz de longo alcance, pois já topou com uma baita onça-pintada, com sucuri das grandes, dissimuladas. E mais: com graúdas raposas do Congresso.
Qui Qui veio buscar um pacote, mas atrasou a entrega. De repente, recebo um e-mail de Danilo com a notícia do contratempo. Um primo, também motoqueiro, bateu num carro parado, que estava enguiçado, mas sem triângulo de advertência. Bateu e morreu quase na hora. Tinha 40 anos, deixou cinco filhos: “É de chorar, meu amigo. E meus olhos marejaram fortemente.”
Além da notícia trágica, o motoqueiro me deixou uma carga preciosa, presente do Danilo: a edição da revista Poesia Sempre, com entrevista do poeta Manoel de Barros. Ana Cecília Martins pergunta ao poeta se ele descobriu a mistura dos sentidos com Rimbaud.
Manoel de Barros dá uma resposta surpreendente, que faz conexão direta com Brasília: “Aprendi com as crianças, por primeiro, que a mistura dos sentidos dá poesia. Ouvi de meu filho certo dia: ‘Pai, eu escutei a cor de um passarinho’. Outra vez, por ler o Correio Braziliense, encontrei lá esta joia falada por uma menina de 7 anos: “Borboleta é uma cor que voa”.
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