PROBLEMA SOCIAL

Inverno impõe mais obstáculos à vida de pessoas em situação de rua no DF

População sem-teto sofre com inverno mais rigoroso no DF. Apesar do aumento gradual das temperaturas nos últimos dias, desassistência é principal desafio com o qual essas pessoas lidam diariamente. Instituições oferecem apoio, mas demanda cresceu na pandemia

Edis Henrique Peres
Rafaela Martins
Yasmin Valois*
postado em 20/07/2021 06:00
Dados da Secretaria de Desenvolvimento Social revelam que cerca de 2 mil pessoas estão em situação de rua, porém, números podem ser maiores -  (crédito:              Fotos: Ed Alves/CB/D.A Press - 16/7/21                       )
Dados da Secretaria de Desenvolvimento Social revelam que cerca de 2 mil pessoas estão em situação de rua, porém, números podem ser maiores - (crédito: Fotos: Ed Alves/CB/D.A Press - 16/7/21 )

Encolhidos em becos, com cobertores e roupas que não protegem totalmente do frio, inúmeras pessoas em situação de rua tentam sobreviver durante o inverno na capital do país. Os termômetros do Distrito Federal marcaram, em 1º de julho, 4,6°C no Gama, com sensação térmica de quase 1°C. Esta estação bateu recorde de registros e é considerada a mais gelada desde 2002, quando o Instituto Nacional de Meteorologia (Inmet) começou a monitorar automaticamente a variação. Mesmo com o tempo mais ameno nos últimos dias, as mínimas afetam a vida de quem não tem abrigo. E, para prestar apoio à população que enfrenta esses desafios diariamente, os brasilienses têm se mobilizado, de maneira autônoma ou por meio de projetos sociais, para doar itens como alimentos e agasalhos a quem mais precisa.

Além do frio, a fome castiga. À noite e pela manhã, quem passa pela Rodoviária do Plano Piloto ou pelo Setor Comercial Sul (SCS), por exemplo, encontra diversas pessoas nessa situação. A Secretaria de Desenvolvimento Social (Sedes) calcula que existam, ao menos, 2 mil pessoas vivendo assim no DF. Desse total, 152 são crianças, e 59, adolescentes. Os números podem ser maiores do que os estimados pela pasta, pois dependem de autodeclaração.

No vaivém de passos apressados, a população sem-teto se torna invisível para muitos. Wesley Oliver, 26 anos, sente-se assim. “Tem um ano e seis meses que estou na rua. Tive um desentendimento com meu pai, não consegui emprego. Sou bom com vendas, mas ninguém me dá uma oportunidade”, relata, enquanto acompanha o raiar do dia com sete amigos, em um beco no SCS. “Meus verdadeiros companheiros são esses aqui”, diz, enquanto aponta para os colegas, deitados. “A gente se ajuda. Todo mundo sai para a rua, tenta conseguir alguma coisa. De noite, montamos um fogãozinho a lenha e fazemos alguma coisa para comer. Também recebemos apoio de algumas pessoas que trazem almoço ou jantar”, completa.

Na última quinta-feira (15/7), o grupo recebeu doações de gorros de lã. Mesmo alegres com o gesto, não escondem as dificuldades enfrentadas por passar a noite na rua. Uma das integrantes do grupo, que pediu para não ser identificada, desabafou: “Somos muito humilhados”. Ela acrescenta que, por vezes, a população do local sofre com a truculência da polícia e de pedestres. “Eles chegam xingando, batendo. E a gente só está aqui jogando baralho, brincando. Não tem nada de errado nisso. Acho que ninguém tem o direito de bater no outro assim, de graça”, pontua.

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    Wendell Nery está na rua há seis meses, desde que perdeu a fonte de renda Ed Alves/CB/D.A Press
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    Dados da Secretaria de Desenvolvimento Social revelam que cerca de 2 mil pessoas estão em situação de rua, porém, números podem ser maiores Ed Alves/CB/D.A Press
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    Dados da Secretaria de Desenvolvimento Social revelam que cerca de 2 mil pessoas estão em situação de rua, porém, números podem ser maiores Ed Alves/CB/D.A Press

Suporte

Atualmente, o DF conta com dois Centros de Referência Especializados para a População em Situação de Rua (Centros Pop). Lá, recebem suporte individual e coletivo, participam de oficinas, além de atividades de convívio e socialização. O espaço não funciona como abrigo, mas é possível guardar pertences, fazer a higiene pessoal, refeições — café da manhã, almoço e lanche —, bem como providenciar documentos. Os grupos atendidos também contam com orientação sobre direitos e para acessar outros tipos de serviço de assistência.

Ainda assim, o serviço não é capaz de suprir todas as necessidades da população em situação de rua. Há seis meses sem teto, Wendell Nery, 31, conta que raramente visita o Centro Pop. Ele diz se sentir mais seguro em frente a uma agência bancária no SCS, devido à proximidade de um posto da polícia militar. “É um local tranquilo”, afirma o autônomo, que acabou nas ruas depois de ficar sem fonte de renda. “Eu trabalhava com lavagem de carros. A situação estava ruim, mas a pandemia piorou tudo. Fiquei sem pagar o aluguel e não tive outra escolha”, lamenta.

Apesar das dificuldades, Wendell não desiste e continua a procurar emprego: “É difícil, porque ninguém quer dar uma oportunidade. Sem isso, não tenho como sair daqui (da rua). Mas a gente tenta fazer um serviço ou outro. Sinto falta dos meus filhos, todo dia penso neles. Tenho cinco, com idades de 4 a 12 anos. Gostaria de ajudá-los, mas não os vejo faz tempo”.

Dignidade

A Casa Santo André, por exemplo, atua com assistência a pessoas socialmente vulneráveis. Contudo, a equipe enfrenta dificuldades para conseguir mantimentos, roupas e para garantir a saúde de pessoas reféns dessa situação. “Em épocas de frio, contamos com pessoas de bom coração que fazem campanhas de agasalhos e cobertores”, relata a voluntária Maria da Penha, 57. Atualmente, alguns acolhidos trabalham, têm família e conseguem contribuir com a iniciativa. “O governo colaboraria mais no suporte para essa população fazendo mais casas de acolhimento e pernoite”, sugere.

Especialista em políticas públicas e socioeducação, Ravan Leão, explica que a legislação brasileira prevê a garantia de suporte às pessoas em situação de rua. “Temos situações bem diferentes. Os motivos que os levam a isso são diversos: há quem se envolveu com alguma questão de delinquência, outros que estão doentes, além de diversas outras problemáticas, como o desemprego. E, mesmo existindo serviços de acolhimento, não são todos que o procuram”, comenta.

Para Ravan, o melhor caminho para solucionar o problema seria fortalecer vínculos familiares e comunitários. “Cuidando da família, independentemente do arranjo ou formato dela, é possível diminuir o número de pessoas na rua. No período de inverno, por exemplo, o Estado, por si só, não consegue suprir todas as necessidades dessa população. Mas é importante que o governo busque oferecer uma vida com dignidade, sem manutenção da pobreza”, opina. “O melhor jeito é trabalhar na prevenção da saída dessas pessoas de casa, mas isso só é possível se entenderem os fenômenos que levam à fuga familiar e à busca de uma solução nas ruas”, completa.

Palavra de especialista

Soluções momentâneas

É sempre importante lembrar que nenhuma pessoa está na rua por escolha. Elas chegam a essa situação por falta de possibilidades. As pesquisas demonstram que ao menos 70% da população de rua teve um trabalho prévio, geralmente informal. Isso significa, também, que a pandemia agravou a situação para muita gente e fez com que tivessem de ir para as ruas.

O acesso às políticas sociais também é problemático. Alguns tentam oferecer cursos ou educação para a pessoa na rua, mas isso não soluciona a situação. É preciso, inicialmente, retirá-las dali. O primeiro passo é a moradia, mesmo que temporária, para que o fenômeno seja solucionado. E há o preconceito. Muitos acham que as pessoas estão na rua porque querem ficar e até citam o problema com álcool e outras drogas. No entanto, em todas as classes sociais temos indivíduos com vícios, mas nem por isso eles estão na rua.

A questão da moradia poderia ser melhor analisada, por exemplo, usando os diversos prédios públicos vazios como um abrigo temporário para essa população. Até porque a atitude de doar roupas e alimentos é uma solução momentânea. O caminho é possibilitar que as pessoas saiam dessa realidade. Outros problemas: nem sempre as unidades de saúde atendem pessoas em situação de rua; há períodos com doação de preservativos, mas não de absorventes higiênicos; e faltam dados, pois não temos um censo demográfico para traçar perfis — sem isso, fica difícil destinar políticas públicas corretamente.

Maria Lúcia Lopes da Silva, doutora em política social e professora do Departamento de Ciência Social da Universidade de Brasília (UnB)

Como ajudar

Casa Santo André
Telefones: 3327-9390 / 984-154-176
Doações: CNPJ 07.354.105/0001-98 (PIX)

Centro Pop Taguatinga
Endereço: QNF 24, A/E nº 2, Mód. A, Taguatinga Norte
Telefone: 3773-7556
E-mail: centropoptaguatinga@sedes.df.gov.br

Centro Pop Brasília
Endereço: SGAS 903, Conjunto C
Telefone: 3773-7561
E-mail: centropopbsb@sedes.df.gov.br

Serviço Especializado de Abordagem Social
Caso encontre uma pessoa ou família em situação de rua precisando de ajuda, é possível acionar a central de atendimento do serviço pelo telefone 3322-1441. O atendimento acontece das 8h às 20h. O número 162 pode ser usado em situação de emergências.

*Estagiária sob supervisão de Jéssica Eufrásio

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