Crônica da Cidade

Severino Francisco
postado em 25/07/2021 00:01

A farsa do voto impresso

Estava folheando o livro de Pedro Paulo Lomba sobre o marechal Cândido Rondon e fiquei impressionado com a sua lucidez e coragem. Em 1973, Pedro se encontrou com uma delegação norte-americana de índios Sioux, em um congresso realizado em Brasília. Os líderes Sioux disseram a ele que, se nos Estados Unidos tivesse havido um Rondon, tudo seria diferente, e milhares de vidas dos índios norte-americanos seriam poupadas no século 19.

E Rondon não atuou em condições ideais, protegido das pressões econômicas. Quando iniciou a construção de linhas telegráficas, em 1907, índios e seringueiros guerreavam na floresta amazônica. O país vivia o ciclo da borracha, a produção dos seringais era estimada em 40% do PIB brasileiro na época. De uma maneira muito semelhante ao que ocorre atualmente, com a investida dos garimpeiros, naquela época os seringueiros invadiam as terras indígenas e praticavam genocídio de aldeias inteiras.

E ainda queriam receber proteção militar sob o argumento da produção do ciclo da borracha, enfatiza Pedro Paulo. Ao receberem a tarefa de construir linhas telegráficas entre Cuiabá e o Araguaia, em 1890, uma das primeiras providências que os militares Gomes Carneiro e Rondon tomaram foi afixar em um dos postes da linha, uma placa com a advertência: “Quem perseguir os índios Bororó será perseguido pelo Exército brasileiro”.

Darcy Ribeiro dizia que ele era o maior de todos os brasileiros. De fato, se destacou em múltiplas frentes: explorador dos trópicos, pacifista, ambientalista, antropólogo e indigenista. Criou o Serviço de Proteção ao Índio, que se desdobraria na Funai. Concorreu três vezes ao Prêmio Nobel da Paz.

Lembrei do marechal Rondon por causa das ameaças do ministro da Defesa, general Braga Netto, de não haver eleições em 2022, dirigidas ao parlamento, se não for aprovado o voto impresso. A proposta do voto impresso está alinhada com a mesma agenda governista desarrazoada da devastação ambiental, da negação da vacina, da liberação das armas, da destruição dos direitos civis, do desmonte dos órgãos de fiscalização ambiental e da gestão negacionista da pandemia. É a pauta da vanguarda do atraso.

A ironia é que o sistema foi criado com a participação de oficiais do Exército, da Marinha e da Aeronáutica na tecnologia. É um dos motivos de orgulho do Brasil. O voto eletrônico existe desde 1994, e nunca ninguém provou qualquer caso de fraude.

Não é verdade também que existe uma dúvida do povo sobre a transparência, como alegou o ministro em nota. Pesquisa CNT mostrou que 64% dos brasileiros confiam no sistema de votação eletrônico. Em compensação, segundo pesquisa Datafolha, 55% dos brasileiros não confiam nunca no presidente.

Com a queda nas sondagens de intenção de voto para as próximas eleições e o receio da derrota, o presidente Bolsonaro começou a plantar a suspeita sobre o sistema eletrônico, macaqueando o ídolo, Donald Trump. Nunca nenhum dos dois apresentou qualquer prova. Na verdade, não é o sistema que está em questão; é a própria democracia. Se ele não ganhar, só pode ser fraude.

Voto impresso não é atribuição constitucional do ministério da Defesa, cada um no seu quadrado. Em vez disso, o ministério da Defesa deveria fazer o que lhe cabe: defender para as próximas gerações as nossas florestas da predação criminosa, defender os nossos índios da invasão de suas terras por garimpeiros, defender as nossas fronteiras do contrabando de armas. Espero que o parlamento enterre, com altivez, o mais rápido possível, a farsa do voto impresso, para o bem da democracia.

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