Entrevista Mercedes Bustamante

"É falsa a dicotomia entre economia e ecologia", diz professora da UnB

Para a professora do departamento de Ecologia da UnB, que este ano foi eleita para a Academia Nacional de Ciências dos Estados Unidos, as pesquisas indicam que os brasileiros se preocupam com o meio ambiente, e é necessário indicar claramente como podemos atuar para implementar ações sustentáveis e demandar do setor privado e do poder público ações responsáveis

Ana Dubeux
postado em 25/07/2021 07:00
 (crédito: Secom/ UnB)
(crédito: Secom/ UnB)

A agonia do Cerrado tem causa e efeito. Mas, para além das altas taxas de desmatamento e dos grandes passivos ambientais, há também um certo desconhecimento em relação a esse bioma importantíssimo. O Correio perguntou a uma das maiores autoridades em ecologia de ecossistemas do país, a professora da UnB Mercedes Bustamante, por que a conservação do Cerrado, que está mais desmatado do que a Amazônia em relação a sua área original, não ganha relevância.

A razão está no desconhecimento. “O Cerrado está em 11 estados brasileiros e contribui com recursos hídricos para outros biomas e regiões. Ainda assim, não é devidamente conhecido e reconhecido. É preciso divulgar sua relevância e a urgência das ações para sua conservação”, avalia Mercedes.

Para a professora do departamento de Ecologia da UnB, que este ano foi eleita para a Academia Nacional de Ciências dos Estados Unidos, as pesquisas indicam que os brasileiros se preocupam com o meio ambiente, e é necessário indicar claramente como podemos atuar para implementar ações sustentáveis e demandar do setor privado e do poder público ações responsáveis.

Nesta entrevista, a professora desmistifica a falsa ideia de que é impossível conjugar o avanço na economia com a proteção ao meio ambiente. Segundo ela, relatórios importantes e documentos elaborados por especialistas apontam claramente que o colapso da biodiversidade e dos ecossistemas traz grandes perdas econômicas, sobretudo para os países menos desenvolvidos e em desenvolvimento.

Ou seja, as economias não funcionam sem os benefícios da natureza. E os grandes eventos climáticos estão aí para provar o quanto a falta de preservação impacta os negócios e a riqueza dos países. “É falsa a dicotomia entre economia e ecologia. As economias mais importantes do mundo, sobretudo nos processos de retomada pós-covid-19, têm incorporado a conservação em seus planos de desenvolvimento”, explica Mercedes.

Uma das pesquisadoras mais citadas no mundo, segundo o site Web of Science, sendo referenciada em trabalhos de 6.389 cientistas de mais de 60 países, a professora entende que as autoridades do governo federal seguem na ignorância, negam a ciência e, ainda por cima, deixarão um legado de atraso. “O desmonte conduzido pela atual gestão federal gera impactos sobre os sistemas naturais que poderão demorar décadas para serem mitigados. Alguns são irreversíveis”, avalia Mercedes.

E isso é péssimo para a imagem do Brasil lá fora. “O mundo, hoje, olha o Brasil com grande preocupação em função dos retrocessos na agenda ambiental e como eles minam o combate às mudanças ambientais globais”, destaca.

A solução passa pelas urnas. Mercedes acredita que as eleições de 2022 serão um momento importante de reflexão dos eleitores brasileiros sobre o impacto que as escolhas do presente terão sobre o nosso futuro. “Os eleitores devem estar atentos ao que andam votando nossos representantes no Congresso e avaliar quem realmente está preocupado em proteger o nosso patrimônio natural e os povos indígenas e comunidades tradicionais que são guardiões dos biomas brasileiros”, sugere.

 

De que maneira a destruição do cerrado pode impactar a nossa qualidade de vida de uma maneira muito direta?
A conversão em larga escala do Cerrado tem impactos sobre o clima em função das emissões de gases de efeito estufa e também sobre a conservação de recursos hídricos. Sistemas simplificados (como pastagens e monoculturas de grãos) têm um funcionamento diferente das áreas de vegetação nativa, resultando em maior temperatura superficial e menor retorno de umidade para a atmosfera. Adicionalmente, perdemos recursos genéticos que estão associados à significativa biodiversidade do Cerrado.

Seu trabalho é referência nacional e internacional quanto às ameaças ao bioma do Cerrado. Com sua experiência, diga-nos, quais são os principais fatores que provocam a dizimação do cerrado?
A expansão da agricultura sem planejamento territorial adequado é um dos principais vetores de ameaça ao bioma Cerrado. Adicionalmente, a fragmentação dos remanescentes de Cerrado aumenta sua degradação com mudanças do regime de fogo e invasão de espécies exóticas. Temos, ainda, a poluição por agroquímicos, que afeta os ambientes aquáticos.

Ainda há tempo para preservar partes importantes do bioma Cerrado ou não há alternativas de recuperação do bioma? Se há alternativas, quais seriam?
Há três frentes importantes para reverter o quadro atual do Cerrado: 1) Redução das taxas de desmatamento que ainda são muito altas; 2) Restauração das áreas degradadas (passivos ambientais); 3) Melhoria da gestão e das práticas em áreas convertidas legalmente para reduzir os impactos ambientais e sociais.

Os que defendem o "progresso econômico" a todo custo garantem que é imperioso desmatar e plantar soja, por exemplo. É isso mesmo ou há caminhos eficazes e eficientes para gerar renda e preservar o bioma Cerrado?
Recentemente, relatórios importantes e documentos elaborados por economistas apontam claramente que o colapso da biodiversidade e dos ecossistemas traz grandes perdas econômicas, sobretudo para os países menos desenvolvidos e em desenvolvimento. Nossas economias não funcionam sem os benefícios que obtemos da natureza. Temos exemplos claros dos impactos das mudanças ambientais, tanto locais como globais. É falsa a dicotomia entre economia e ecologia. As economias mais importantes do mundo, sobretudo nos processos de retomada pós-covid-19, têm incorporado a conservação em seus planos de desenvolvimento.

O que deveria ser feito para conscientizar e para frear a destruição do cerrado no Centro-Oeste, berço dos principais rios brasileiros?
Ampliar a divulgação sobre esse bioma tão rico e importante para outras regiões, além do Centro-Oeste, é muito importante. Também é preciso cobrar que o setor do agronegócio atue de forma responsável na conservação de um patrimônio natural que é de todos os brasileiros. Finanças públicas e privadas devem considerar, de forma séria e criteriosa, a sustentabilidade em seu investimentos. Por fim, o poder público tem a obrigação de coibir atividades ilegais e garantir a implementação da legislação ambiental.

Projetos de educação nas escolas? O que deveria ser cobrado do poder público? Os governos criam loteamentos sem qualquer critério. O que se deve exigir deles para que o meio ambiente do Cerrado não seja ainda mais atingido?
Movimentos de jovens contra a crise climática indicam que as novas gerações têm consciência dos impactos com os quais terão que conviver nos próximos anos. A educação tem um papel central para a reflexão sobre as várias dimensões da sustentabilidade e para qualificar o debate. Como mencionado, o poder público tem o dever e os meios de coibir atividades ilegais e deve estabelecer políticas públicas que sejam sustentadas pelo melhor conhecimento disponível e considerando as mudanças ambientais. Não há crescimento infinito com recursos que são finitos.

Há como calcular quantos anos se perde com políticas do tipo “vamos passar a boiada”, defendidas pelo ex-ministro Ricardo Salles?
A legislação e as estruturas de proteção do meio ambiente no Brasil são uma construção de muitos anos de participação social e que avançaram a partir da Constituição de 1988. O capítulo de Meio Ambiente na nossa Constituição é um marco definidor da relevância da natureza para o país. O desmonte conduzido pela atual gestão federal gera impactos sobre os sistemas naturais que poderão demorar décadas para serem mitigados, alguns são irreversíveis. A reconstrução da governança socioambiental no Brasil também demandará tempo, pois a sua base é a confiança nas instituições, e o que vivemos agora é um grave quadro de violência contras instituições.

A quem interessa a proliferação de fake news sobre mudanças climáticas que tentam jogar a opinião política contra as políticas de proteção ambiental? Em que medida a divulgação científica também foi atingida pelos exércitos da era das fake news?
Hoje, os fatos, como o aumento da frequência de eventos extremos e maior variabilidade do clima, se sobrepõem ao discurso daqueles que negam a influência humana sobre o sistema climático. Não atuar para reverter suas causas e reduzir seus impactos é uma escolha que implica prejuízos substanciais para nossa economia e para a segurança dos brasileiros. A divulgação científica é cada vez mais importante para se contrapor ao negacionismo com o conhecimento científico, robusto e claro. A ciência que embasa as mudanças climáticas é muito sólida.

As eleições presidenciais no Brasil em 2022 podem interferir na perspectiva global das mudanças climáticas?
O mundo hoje olha o Brasil com grande preocupação em função dos retrocessos na agenda ambiental e como eles minam o combate às mudanças ambientais globais. As eleições em 2022 representam um momento importante de reflexão dos eleitores brasileiros sobre o impacto que as escolhas do presente terão sobre o nosso futuro. Os eleitores devem estar atentos ao que andam votando nossos representantes no Congresso e avaliar quem realmente está preocupado em proteger o nosso patrimônio natural e os povos indígenas e comunidades tradicionais, que são guardiões dos biomas brasileiros.

Por que a conservação do Cerrado, que está mais desmatado do que a Amazônia em relação a sua área original, não ganha relevância no debate público nacional? Qual o grau de preocupação dos brasileiros com o meio ambiente?
O Cerrado está em 11 estados brasileiros e contribui com recursos hídricos para outros biomas e regiões. Ainda assim, não é devidamente conhecido e reconhecido. É preciso divulgar sua relevância e a urgência das ações para sua conservação. Pesquisas indicam que os brasileiros se preocupam com o meio ambiente. O que precisamos é indicar claramente como podemos atuar para implementar ações sustentáveis e demandar do setor privado e do poder público ações responsáveis.

A pandemia fez com que os brasileiros, em tese, falassem como nunca na ciência. Acredita que o fervor momentâneo terá algum efeito prático? Que ensinamentos este momento nos deixa?
A pandemia aproximou os brasileiros da ciência e de sua importância para a solução de problemas. A capacidade de fornecer respostas rápidas depende de investimento continuado, pessoal qualificado e treinado, e laboratórios bem equipados. Os cortes no orçamento da ciência neste momento nos deixam desprotegidos para enfrentar futuros choques com a covid-19. O ensinamento central aqui é que investir em ciência é garantir o futuro do país. Sem isso, estamos aprisionados no passado, enquanto o resto do mundo avança a passos largos.

Como vê a perda de tantos brasileiros na pandemia? Os governos deveriam ter sido mais céleres nas decisões? Que exemplo no mundo poderia ser usado no Brasil?
A dor pela perda de tantos brasileiros e pelas sequelas físicas e emocionais decorrentes da pandemia é imensa. As desigualdades sociais e econômicas do Brasil contribuíram para um quadro ainda mais crítico. A má gestão do governo federal e escolhas sem base na ciência foram fatores decisivos para que atravessássemos esse choque com tantas perdas. Vários países implementaram, com sucesso, medidas que o Brasil poderia ter adotado para mitigar os impactos até o início da produção de vacinas. Posteriormente, com o atraso e falta de coordenação da vacinação, o país deixou de seguir seu próprio exemplo em campanhas anteriores do Programa Nacional de Imunização.

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