Crônica da Cidade

Obra-prima de Machado

Severino Francisco
postado em 26/07/2021 19:56

Machado de Assis, o nosso bruxo de Cosme Velho, sempre teve fascínio pelo tema da loucura. Com o seu olhar acurado, na demência de alguns personagens, ele vislumbrava, algumas vezes, a estultice de toda a sociedade. Esse é o caso de O alienista, Memórias póstumas de Brás Cubas e Quincas Borba.

Nada mais atual do que o emplastro Brás Cubas, obsessão do personagem Quincas Borba e do próprio Brás Cubas. Basta substituir o emplastro Brás Cubas pela cloroquina, que estaremos no Brasil em transe da loucura institucionalizada na gestão da pandemia do novo coronavírus.

Mas a Confraria dos Bibliófilos do Brasil, instituição de amantes dos livros artesanais de arte, acaba de nos brindar com uma verdadeira preciosidade: o conto O anjo Gabriel, que aparece em volume ao lado da novela clássica O alienista, compondo uma loucura em dose dupla de Machado. Se O alienista explora o tema da loucura institucionalizada, O anjo Gabriel trata da insanidade individual, em uma trama extremamente engenhosa.

É um conto quase inédito de Machado, só foi publicado três vezes e ficou esquecido nas edições das obras completas do bruxo de Cosme Velho. Sob o trauma de uma suposta traição da mulher, o major Tomás se insula em uma casa, se investe da identidade divina do anjo Gabriel e envolve a bela filha Celestina no delírio.

Tudo muda quando o doutor Antero entra na trama. “Cansado da vida, descrente dos homens, desconfiado das mulheres e aborrecido dos credores, o doutor Antero da Silva determinou um dia despedir-se do mundo”, conta Machado. Ele se salva ao se envolver em um enredo de peripécias mirabolantes.

É conduzido por um desconhecido lacônico que não sabe o nome do patrão. O criado o leva até uma casa em que o patrão, o enigmático major Tomás, mora com a filha. Antero se vê enredado em uma trama de mistério e esquece o desencanto com a vida. Surpresas fantásticas são desfiadas em série a cada instante. O major Tomás lhe faz uma proposta: “Fui amigo de seu pai; quero prestar-lhe esta homenagem póstuma, dando ao senhor em casamento a minha única filha. ”

Ela tem o sugestivo nome de Celestina. E, de fato, era celestial: “O doutor ficou profundamente surpreendido com a aparição; até certo ponto contava com uma rapariga nem bonita nem feia. Pelo contrário, tinha diante de si uma verdadeira beleza. Era, com efeito, um rosto angélico; transluzia-lhe no semblante a virgindade do coração”.

No entanto, o nosso herói fica angustiado com a percepção de que o major Tomás tem de si mesmo. Ele se autodenomina o anjo Gabriel: “Eu sou o anjo Rafael, mandado pelo Senhor a este vale de lágrimas a ver se colho algumas boas almas para o céu. Não pude cumprir minha missão, porque apenas disse quem era fui tido na conta de impostor”.

Enquanto isso, Antero lê nos jornais notícias sobre a sua morte. E resolve voltar para a vida em sociedade. O folhetinista de um dos jornais sentencia: “Dizem que reapareceu o autor de uma carta com que me ocupei ultimamente. Será verdade? Se voltou não é autor da carta; se é autor da carta não voltou”.

Mas Antero responde com ar sobrenaturalmente sóbrio: “Voltei do outro mundo, e apesar disso sou o autor da carta. Do mundo de que venho trago uma boa filosofia: ter em nenhuma conta a opinião dos meus contemporâneos, e em menos ainda a dos meus amigos”. O anjo Gabriel, redescoberto pela confraria dos amantes de livros artesanais de Brasília, é uma pequena obra-prima que, a partir de agora, não pode faltar em nenhuma antologia de Machado ou de literatura fantástica.

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