Crônica da Cidade

Final de campeonato

Alexandre de Paula
postado em 30/07/2021 20:30


Depois de cinco extensos meses, reencontrei meus pais. A visita é muito curta para matar a saudade acumulada, mas me colocou em apuros. Em um dia, minha casa foi revirada de cabeça para baixo. Minha mãe criticou a organização dos armários e disse que o que eu julgava um caos muitíssimo consciente não tinha nada de lógico. Meu pai avaliou negativamente todas as prateleiras e quadros na parede. Fez longos relatórios para mostrar que as buchas usadas por mim na hercúlea tarefa de fixar os objetos eram do tipo errado. Teceu críticas elaboradas sobre a instalação do chuveiro, eficaz, mas feia e pouco caprichada. Dei carta branca para que eles solucionassem os problemas levantados. Obviamente, ninguém quis.

Mas o apuro, à vera, é outro. Desde que comecei a morar sozinho, gosto de cozinhar, embora consiga fazer isso menos do que o recomendável. Dois livros da Rita Lobo, cerca de 420 horas num curso da renomada instituição YouTube e uma obsessão por programas de gastronomia na televisão me ensinaram algumas coisas. De modo que sei me virar e, com a devida instrução, consigo até executar receitas um tanto complexas — acompanhadas de bons coquetéis (nos drinks, eu me garanto mais). O problema é que fui desafiado a preparar o jantar desta noite. Não qualquer jantar, diga-se: algo de impressionar.

Penso que o primeiro parágrafo foi suficiente para que o leitor entenda o nível de exigência dos meus pais. Não dão moleza. Nunca deram. No colégio, tinha que tirar notas boas. Havia recompensas, mas desde que nenhum deslize fosse cometido. Foi assim que ganhei meu primeiro violão — com cobranças também para tocar melhor e parar de incomodar os ouvidos. Isso posto, está claro que qualquer que seja o preparo de hoje, ele será escrutinado nesta noite.

Vamos aos currículos dos jurados — que deixariam Henrique Reaça, o apresentador mal humorado e bobão do Masterchef, com medo. Minha mãe é mineira. É autora do livro — inventado agora — Pimenta no prato dos outros — A culinária da roça. Tem as melhores receitas de bife a rolê, galinhada, frango caipira de molho com quiabo, polenta de milho verde e guariroba. Ela é capaz de reproduzir qualquer prato sem saber receita nem nada. Meu pai… Bem, meu pai sabe comer. O que já é muito, embora ainda precise aprender a beber.

Escrevo esta crônica angustiado. Não sei o que preparar. Preciso ir ao mercado comprar ingredientes, fazer o mise en place — e há todo o mise-en-scène também. De entrada, sei que oferecerei alguns drinks com a intenção de amaciar o coração dos jurados e deixá-los mais contentes. Nada será capaz de conquistá-los. Mas, se minha mãe me conceder ao menos um pequeno elogio, eu juro que é possível que vocês só me encontrem em outros cantos e que eu troque a redação pelas panelas.

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