Crônica da Cidade

Olhando o coração

Severino Francisco
postado em 05/08/2021 22:21


No ano passado, comprei um carro, e uma das exigências era de que ele tivesse aparelho para tocar CD. Reconheço as inovações da tecnologia, mas gosto da materialidade do CD e do livro físico. Eu acho muito bom ouvir música no carro que, em Brasília, sempre tem o seu momento de espaçonave, segundo o poeta Francisco Alvim.

Na semana passada, fiquei com vontade de escutar uma antologia de Elba Ramalho. Fui a uma discoteca, mas não encontrei. Então, levei um mais recente. Logo de cara, gostei muito da faixa que abre o disco, Olhando o coração, que empurra a gente com o som da sanfona.

Era um forró clássico, mas com uma poesia mais requintada, que me chamou a atenção: “O meu andar pelo mundo / É um andar bem profundo / Vai onde tem um forró/ Uma alegria uma dança / Meu coração não se cansa / De uma festa encontrar”.

Elba Ramalho, a um só tempo, moderniza e imprime uma marca ancestral nordestina em suas interpretações. Mas eis que, ao folhear o encarte, me deparo com a surpresa: o autor da linda canção é brasiliense, é Climério Ferreira. O interessante na letra de Climério é que o forró é apresentado quase como uma utopia de felicidade e como um destino brasileiro ou nordestino.

Ele é um poeta que tira de letra. E, na voz de Elba, as suas palavras ganham sopro, relevo e dramaticidade: “Mas por enquanto nem tento / Apreciar as estrelas / Olhar pro céu é vê-las / Piscarem luzes no chão / Eu cá por mim me contento / E sem querer ofendê-las / Em vez de olhar estrelas / Olho pro meu coração”.

Os irmãos piauienses Clodo, Climério e Clésio sempre me pareceram índios yanomamis. Clésio já nos deixou, mas legou, também, lindas canções. Eles não são de briga; são de festa. Não é por acaso que, quando se encontraram com Nara Leão, tornaram-se grandes amigos. A ponto de Nara ter composto a única canção em homenagem aos amigos piauienses.

Climério chegou a Brasília em 1962, aos 18 anos, para morar na Cidade Livre, futuro Núcleo Bandeirante, na 4ª Avenida, uma espécie de cidade cenográfica de filmes de faroeste, erguida a toque de caixa para abrigar o comércio, os hotéis e outros serviços. Veio com uma carga muito forte de cultura nordestina. Em Teresina, assistiu a autos populares, festas de são-joão, forrós, shows de Jackson do Pandeiro e Luiz Gonzaga.

Levou um susto ao ver Gonzagão metido em uma roupa encourada de cangaceiro misturada com vaqueiro, em um show promovido pelo Colírio Moura Brasil. Ficou maravilhado com a indumentária, a sanfona, a performance teatral e o sotaque. Pela idade e pela vivência, tinha tudo para ser roqueiro. Acompanhava o movimento, ouvia os discos, mas o rock não pegou em sua pele como ocorreu com a maioria das pessoas de sua geração.

A sanfona lhe diz muita coisa, o rock, não. Ele não se jacta de nada, considera até um defeito não ter sido contaminado pela energia do rock. Em Brasília, reencontrou um pedaço desgarrado do nordeste e um espaço para ser piauiense/brasiliense. Tornou-se professor da Universidade de Brasília, fez doutorado no Canadá, mas não perde o despojamento de índio piauiense.

Olhando o coração é uma das 60 músicas que os irmãos piauienses compuseram com Dominguinhos, a quem conheceram em Brasília, em 1979. É um hino ao forró e aos poderes de imantação da música: “O meu andar pela vida / É sem controle errante / É como um sonho de amante / Que acredita no amor / E nessa trilha perdida / No rumo desconhecido / O meu andar atrevido / Cura a ferida e a dor”.

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