A morsa
“Eu sou ele, você é ele, você sou eu e nós somos todos juntos.” Essa é uma tradução livre das primeiras linhas da canção I’m the walrus, dos Beatles. Assim, de cara, a imagem que vem é a de meu pai sentado no chão da sala em uma das poucas vezes que brincou com a neta. Tenho uma foto disso. Uma das poucas vezes, porque a doença neurológica que ele tinha avançou rápido na etapa final daquela vida. Poucas vezes, pois não consegui que nos reaproximássemos. Não encontrei o caminho. Talvez assustado com o fraquejar daquela chama que um dia tive certeza ser a mais forte que já queimou no mundo. Olho a foto e penso: “somos todos juntos”. Uma mistura de genética e amor.
Talvez, a chama tenha sido mesmo forte. Velas que queimam mais forte se extinguem mais rápido. Não importa que não queiramos acreditar. Acreditar, aliás, poucas vezes esteve em questão quando lidamos com a realidade. Fato é que um dia ele não estava mais lá. Em um dos momentos mais difíceis da minha vida, visitei o corpo cinza e frio em uma cama de concreto nos fundos de um hospital, para entregá-lo aos homens da funerária. Eles o levariam em um vasilhame grande. Ele parecia menor que jamais fora. A realidade descia sobre mim como uma guilhotina.
Tempos depois perdi os óculos no mar. Não pude deixar de pensar no velho. Parecia nunca se preocupar com o incidente em si, mas com o que o fato poderia trazer. “O que você não queria enxergar quando entrou de óculos no mar”, teria perguntado de forma enigmática. Mergulhei, enterrei as mãos no leito. Onde estavam meus óculos?! Não podia admitir. Queria enxergar. Quero enxergar. Como o velho Sagan, prefiro a realidade a uma fábula reconfortante. Mas como o velho Gabriel, os óculos já não estavam lá.
Passado meses, alguns poucos anos, a vida seguiu em frente, a saudade instalou-se como uma ferida que se torna parte do corpo. E de tanto olhar para ela, pareceu tudo bem. Estava limpa, bem cuidada, em geral protegida, e vez ou outra, doía. Era um pouco do meu pai naquele machucado. A vida mudou, como sempre, por caminhos deveras inesperados. Veio uma pandemia, uma separação, novas alegrias e decepções e não pude perceber quando a saudade também mudou. Saudade também muda. Quando percebe que nos acostumamos com o latejar esporádico, desenvolve um sintoma novo.
Outro dia, pedi a mim, insistentemente (talvez tenha sido a criança em mim), por um vídeo ou áudio, para que pudesse ouvir a voz do meu velho pai. Não tinha. Ficamos próximos nos seus meses finais, é claro. Falei muito com ele nesse período. Admiti meus erros, contei das frustrações, ressaltei o quanto ele teve razão em tanta coisa que me revoltou. Mas, ele já não falava mais. Consigo ouvir uma nuance daquela voz pausada e didática na minha mente. Quase como um chamado. Mas nunca compreendo o que diz. Seria apenas um pigarro vindo do antigo escritório, na casa em que moramos quando eu era criança num mundo sépia?
Hoje sei que ele também tentou se reaproximar. Mas não vimos os movimentos um do outro. Talvez, a tentativa fosse a reaproximação em si e só não tenhamos percebido. Ontem foi dia dos pais. Eu tinha tanta coisa pra contar. Tínhamos canções para ouvir, poesias para ler, brigas por travar. Queria ver aquele semblante ao dizer das novas. Dá saudade, mas, também, uma responsabilidade muito grande que ele não esteja mais aqui. Hoje, entendo muito mais o velho. Hoje, o pai sou eu. Duas vezes. Como ele. E nós somos todos juntos.
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