Crônica da Cidade

Templo ambulante

Adson Boaventura
postado em 13/08/2021 22:41

Se fôssemos adaptar o Deus cristão do Velho Testamento para os dias atuais, acho que a melhor forma de representá-lo seria um relógio. Um deus que gosta de uma treta e que cobra bastante dos fiéis. Na mitologia grega, Cronos era o deus do tempo, principalmente em seu aspecto destrutivo. “O tempo inexpugnável que rege os destinos e a tudo pode devorar”, disse algum poeta na Wikipedia. Nada mais atual do que essa figura divina, aliás, desde que a frase “tempo é dinheiro” foi forjada a ouro.

Tenho um objeto pendurado na parede da minha cozinha que costumo chamar de intervenção artística, algo meio que mictório de Duchamp. É um relógio, sem pilha, parado no tempo e pendurado de cabeça para baixo. Quando tive a ideia de tal “obra”, me senti a pessoa mais herege dos últimos tempos. Então, criei uma teoria: nos aproximamos de Deus quando ficamos em paz com o tempo.

Alcanço esse estágio, geralmente, quando estou dentro do ônibus. Viajo fora do horário de pico, com o ônibus vazio, sentado do lado da sombra. Sendo assim, é até agradável. (Viagens de ônibus são temas frequentes em meus escritos. Já pensei em ser motorista de ônibus e de caminhão, mas depois descobri como entrar em paz com meu interior sendo passageiro, mesmo com alguns solavancos e estresses do trânsito.)

Estar dentro de um ônibus pode ser um ato de protesto contra a correria do mundo atual e o deus do tempo e do dinheiro, apesar de a passagem custar
R$ 5,50. É um momento em que eu apenas tenho de esperar ser levado do ponto A para o B. Não preciso fazer mais nada, só pensar sobre a vida enquanto estou em trânsito. É terapêutico, me desconecto durante a viagem. O tempo passa mais devagar, e ele está nas mãos de Deus, quer dizer, do motorista.

Durante o trajeto, olho pela janela pessoas em seus carros. Ou observo os fiéis passageiros no ônibus e escuto suas conversas, como um padre no confessionário. Consigo ficar relaxado até o trabalho, algo que não aconteceria se eu estivesse dirigindo. (Mas eu ainda quero dirigir caminhão e ônibus, um dia.) A viagem acaba sendo um alívio mental, uma meditação de 26 minutos.

A volta para casa é em carro de aplicativo, viagem mais cara — ao menos é mais rápida, 20 minutos, em média. O problema é esperar algum motorista aceitar a viagem (app, essa invenção do diabo). Não é tão relaxante psicologicamente (ainda estou com a cabeça cheia de coisas do trabalho), mas é tempo suficiente para me desenergizar e chegar em casa para o descanso. No mundo atual, o ônibus e o carro de aplicativo acabam sendo meus templos. Ser passageiro é minha religião.

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