Opinião

Crônica da Cidade: Ficção antimonotonia

A ficção científica tem dois motores principais. O primeiro é trazer novas interpretações para o mundo que vivemos. O segundo, talvez menos importante, é imaginar o futuro

Luiz Calcagno
postado em 16/08/2021 06:00
 (crédito: Kevin Dietsch / Getty Images / AFP)
(crédito: Kevin Dietsch / Getty Images / AFP)

A ficção científica tem dois motores principais. O primeiro é trazer novas interpretações para o mundo que vivemos. O segundo, talvez menos importante, é imaginar o futuro. Apesar das inúmeras previsões acertadas, por exemplo, no seriado clássico de Star Trek, como tablets e a transmissão de informação entre equipamentos tecnológicos sem o uso de fios na década de 1960, trata-se, sempre, de obras escritas do presente, que imaginam o futuro a partir do tempo em que foram escritas.

Mas isso não ocorre quando falamos do papel filosófico de reinterpretação do mundo de uma boa ficção científica. Um exemplo é o filme Branco sai, preto fica, escrito e dirigido por Adirley Queiroz, que lança Ceilândia no futuro com ares de cyberpunk olhando, ao mesmo tempo, para um caso de violência policial de 1986 em uma festa black. A grosso modo, cyberpunk é um estilo de ficção científica baseado em um mundo com alta concentração de renda, miséria, estado corporativo e difusão de implantes tecnológicos.

No caso de Ceilândia, a cidade não se transforma para parecer um lugar de outra época. É apenas o olhar do diretor, a fotografia, a escolha de cenários, que lança a cidade satélite em tempos verbais imprevisíveis. E como a história é bem contada, um container serve, perfeitamente, como máquina do tempo. Já o contista argentino Jorge Luis Borges adentrou o terreno da ficção científica em mais de uma ocasião, com maestria digna de nota.

Em There are more things (existem mais coisas, em tradução livre) o escritor coloca o personagem diante do pavor do desconhecido. Como reagiríamos diante do inconcebível de uma espécie que não temos como descrever, pois qualquer elemento para imaginá-la seria essencialmente humano? Rabos, presas, gosmas, tentáculos, pedipalpos, todas referências terrenas demais para algo saído, talvez, de outra dimensão. O protagonista acaba preso diante de móveis que ele só pode intuir o uso, dispostos, porém, em uma antiga casa de sua infância, um cenário familiar, como alguém que volta ao passado para encontrar outro mundo, literalmente.

E no conto o Livro de Areia, Borges apresenta a concepção de infinito e como ela é tão poderosa e incognoscível, que se torna insignificante para o ser humano, ou como somos insignificantes diante dela. E mais uma vez, como isso pode ser assustador. Se o tempo é infinito, então estamos em qualquer lugar do tempo. Se o espaço é infinito, então estamos em qualquer lugar do espaço. E ponteiros e fronteiras não passam de convenções insignificantes para criaturas que têm medo da magnitude do universo.

No fim, é tudo imaginação, mas com doses de ciência e filosofia para ajustar a lente que nos faz ver o mundo. São páginas e películas para que possamos, como disse Jostein Gaarder, em O mundo de Sofia, escalar o pelo do coelho que é o mundo e, lá de cima, ver que existem mais coisas. Questionar quem somos, de onde viemos, para onde vamos e “qual o significado da vida, do universo e tudo mais”, como perguntou, também, Douglas Adams, no Guia do mochileiro das galáxias. É como se transforma o medo cristalizante em espanto e descoberta. E então, já atravessamos a fronteira turva entre a ficção e o real em busca de cura para a névoa do cotidiano.

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