Choro da resistência
O Brasil está celebrando 150 anos do choro, o ritmo terno e buliçoso que toca no que há de mais delicado e alegre em nossa alma. É um ritmo brasileiríssimo e, para mim, tem a ver com canto de passarinho, drible de Garrincha ou voo elétrico de beija-flor. E, nestes 150 anos do primeiro gênero musical singularmente brasileiro, Brasília escreveu um capítulo muito importante na revivescência, na resistência e na modernização do choro.
No princípio, era a solidão espacial do descampado. Para defenderem-se, os brasilianos fizeram do apartamento de Raimundo de Brito, na 105 Sul, o quintal para as primeiras rodas de choro. Raimundo era um jornalista muito culto e sarcástico. Quando as rodas de choro foram transferidas para o apartamento de Odette Ernest Dias, na 311 Sul, as plantas da flautista revelaram um ouvido apuradíssimo. A audição contínua daqueles mestres fez com que plantas vicejassem com um esplendor extraordinário.
Se o samba é um gênero de classes populares, o choro é de classe média: e veio para Brasília transferido com os funcionários públicos. Ao se mudar do Rio para a capital modernista, Bide da Flauta, o instrumentista preferido de Pixinguinha, resolveu comprar uma espingarda, pois os jornais cariocas diziam que havia muita onça. Mas ele não encontrou nenhuma: topou com Pernambuco do Pandeiro, quem logo convidou para animar as rodas de choro.
Nos tempos da mocidade, eu era animado por um anarquismo confuso e fazia, tolamente, campanha contra as instituições. Mas, hoje, vejo que as instituições são essenciais para o funcionamento da democracia e da cultura. Com extrema lucidez, Reco do Bandolim profissionalizou o Clube do Choro e criou a Escola de Choro Raphael Rabello.
Elas projetaram o gênero rumo à plataforma do futuro: antes delas o choro era “música de velhos”. Depois, tornou-se música de jovens. Hoje, é possível encontrar uma legião urbana de crianças e adolescentes armados de violões, cavaquinhos, bandolins e pandeiros.
Revelou uma infinidade de talentos da música, que brilham nos palcos mais importantes do país e até em palcos importantes do mundo. Durante a pandemia, vivem a mais dura prova de resistência de toda a história, porque os shows e as aulas são atividades presenciais. É uma situação duplamente pungente, pois os músicos e o Clube do Choro constituem uma irmandade. A sobrevivência ficou em risco, cada um conhece o drama do outro.
Bem que Reco tentou promover atividades virtuais, mas não conseguiu patrocínio. Por isso, o Clube do Choro retomou várias projetos, a maioria ao ar livre, com distanciamento físico e protocolos de saúde. De minha parte, confesso que estou morrendo de saudades da Feijoada com Samba, dos shows de chorinho ou das rodas musicais. Mas, resistirei à tentação e, tanto quanto possível, permanecerei na minha bolha sanitária.
A Secretaria de Turismo do DF inseriu o Clube do Choro e os pontos em que se pratica o gênero na cidade em um roteiro turístico. Nada mais justo. O choro é uma das manifestações que nos representa com dignidade. Só faltou Pixinguinha participar, presencialmente, da nova história do choro de Brasília.
Na passagem dos 150 anos do choro, gostaria de brindar o Clube do Choro e a Escola de Choro Raphael Rabello, endereços da boa música e da educação de qualidade, que reescrevem a história do gênero no país. É o que precisamos para construir um país melhor. O Clube do Choro é um motivo de orgulho para Brasília e para o Brasil.
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