ENTREVISTA

"Há uma pandemia de falta de humanidade", destaca Dom Marcony

Bispo auxiliar de Brasília, Dom Marcony é o primeiro nascido na cidade. O sacerdote critica o egoísmo e avalia que a crise de fé é a mais profunda que uma pessoa pode experimentar

Ana Dubeux
postado em 05/09/2021 06:00
Dom Marcony:
Dom Marcony: "Os que detêm o poder público devem se unir cada vez mais em prol da saúde do povo. Devemos fortalecer as instituições e não diminuí-las" - (crédito: Marcelo Ferreira/CB/D.A Press - 12/10/20 )

O primeiro padre nascido em Brasília, Dom Marcony Vinícius Ferreira, experimenta em seu exercício sacerdotal toda a contradição do ser humano e do tempo em que vivemos. No trabalho de evangelização e de socorro aos desassistidos, observa pessimismo e esperança; profundo egoísmo e altruísmo. Reconhece também que a crise de fé é a mais profunda que o ser humano pode experimentar.

E ela tem consequências importantes: “Como o homem se fecha em si, o autorreferencial se torna soberba, orgulho e autossuficiência. Poderíamos dizer que há no mundo uma pandemia de ‘falta de humanidade’. Quando o homem não tem tempo para Deus, não tem o devido olhar para os que o circundam”.

Nesta entrevista ao Correio, o padre que chegou a ser ameaçado por extremistas antidemocratas no ano passado, durante ocupação na Esplanada, disse que estamos todos “no mesmo barco” e que não podemos negar “que estamos vivendo um dos momentos mais sombrios da história”. Apesar disso, considera que o pessimismo não pode prosperar.

“O olhar de esperança em dias melhores é sustentado pela fé e pela missão e responsabilidade de cada um nesse momento. A consciência de que não estamos sozinhos nos fortifica”, diz.

Dom Marcony defende o resgate de valores, como a solidariedade e a preocupação com o outro. “O primeiro valor a ser resgatado é o da dignidade humana.” Também alerta para a necessidade do diálogo, a obrigação de quem detém o poder de se unir em prol da saúde do povo e para fortalecer as instituições “em vez de diminuí-las” e fala sobre o papel da Igreja nesse momento.

Sobre as palavras do papa Francisco a respeito do Brasil — “é muita cachaça e pouca oração” — o padre garante que foi brincadeira: “O Santo Padre ama os brasileiros”.

Na nossa última entrevista, há pouco mais de um ano, logo após receber ameaças de morte de grupos que promoviam atos antidemocráticos, na Esplanada dos Ministérios, o senhor alertou: “Precisamos pacificar o país”. Por tudo que temos visto, o radicalismo recrudesceu. O que fazer?

Diante do radicalismo, devemos buscar mais diálogo respeitoso, sem agressividade, saber acolher e escutar o outro, mesmo que pense diferente da gente, ser capaz de ouvir, sempre buscando o bem comum, respeitando as diferenças.

Uma das bandeiras da igreja é defender ações que socorram os mais pobres. Acredita que isso está acontecendo na pandemia?

A Mãe Igreja, em suas diversas iniciativas, silenciosamente sempre se esforçou e se esforça para atender a todos e prioritariamente os pobres. Com a pandemia, buscou responder ao mais urgente. Além dos pobres e famintos, tenta responder aos que se encontram desempregados e aflitos também emocionalmente e espiritualmente.

A insegurança alimentar — ou fome, em português claro — é uma das grandes preocupações da Igreja. Como a Arquidiocese de Brasília está agindo para atenuar esse problema que já era grave antes da pandemia?

Na Arquidiocese de Brasília trabalhamos por meio do vicariato de ação social, dando assistência aos necessitados, desde o apoio aos venezuelanos por meio da caritas arquidiocesana, até a distribuição de cestas básicas nas cidades menos favorecidas, como Estrutural, Sol Nascente, Itapoã, como também em área rural. Um trabalho muito bom tem sido feito pelo grupo Santa Dulce dos Pobres, além dos nossos vicentinos, Comissão Justiça e Paz e outros. Ainda atendemos as diversas creches e nossos irmãos moradores de rua, por meio de quentinhas e sopas, preparadas em algumas paróquias de Brasília.

Como a Igreja se adaptou para as novas demandas da sociedade diante da pandemia?

A adaptação mais visível foi no campo litúrgico, onde tivemos que aprender a lidar com as redes sociais. Mas nos adaptamos igualmente a todo esforço da sociedade, em cuidar do distanciamento, uso de máscaras, termômetro, reuniões e aulas on-line. No campo econômico, suspendemos obras e reformas, incentivamos o home office, entramos nos planos de redução oferecidos pelo governo federal e nos adequamos às exigências do Governo do Distrito Federal.

Como a pandemia pode reforçar os valores humanistas da sociedade?

Creio que a pandemia nos mostrou, em primeiro lugar, que todos “estamos no mesmo barco”, como nos recordou Francisco no início da Quaresma de 2020. O primeiro valor a ser resgatado é o da dignidade humana. Todos somos irmãos, mas não num sentido emocional, sentimental, mas de verdade. Princípios como: solidariedade, preocupação com o outro. Compartilhar do pouco que temos, fuga do egoísmo e individualismo... Creio que são passos a refletir e atuar na sociedade adormecida no individualismo. Como nos recordou o papa S. Paulo VI, “a Igreja é perita em humanidade”.

É possível ter um olhar poético diante desse momento difícil? Como faz para aliviar a tensão?

Não podemos negar a realidade de que estamos vivendo um dos momentos mais sombrios da nossa história. Ao mesmo tempo, o olhar de esperança em dias melhores é sustentado pela fé e pela missão e responsabilidade de cada um nesse momento. Corre-se o risco de um pessimismo generalizado ou de indiferença para com o momento, sobretudo de sofrimento pela perda de tantos irmãos. A consciência de que não estamos sozinhos nos fortifica. A tensão é aliviada com o testemunho de tantos que se fazem próximos, com a certeza do amor familiar e a beleza do serviço dos profissionais.

O que mudou na sua rotina neste ano de pandemia?

A correria não parou, o atendimento aumentou, pois pelos meios de comunicação tudo fica mais rápido, imediato, desde os “zaps” até as “lives” em aulas e palestras.

Como ficam as grandes questões da humanidade no pós-pandemia?

Temos que aprender a convivência respeitosa, os direitos e a dignidade humana, o perdão e a ajuda mútua, a consciência dos governantes de busca do bem comum, do não fechar-se nos limites, abertura aos migrantes, oferecimento de oportunidades... Isso tudo desejamos e rezamos nessa intenção.

O momento exige resiliência e ativismo solidário. Que projetos destacaria da igreja em Brasília?

O nosso projeto é sempre de evangelização, de levar Cristo ao coração de todos e que nenhum espaço do Distrito Federal fique sem o anúncio da Palavra de Deus e da caridade ativa. Não somos “ONG”, somos irmãos preocupados com a pessoa integralmente considerada: material e espiritualmente. Enfim, corresponder aos apelos do nosso amado papa Francisco.

 

Que ensinamento este momento nos deixa?

A vivência do amor de Cristo, que mais do que um momento agradável, é aprender a dar-se. Dar de Si, no tempo, na atenção, na paciência, na escuta, na caridade verdadeira, ajudar o outro não porque precisa, mas porque é meu irmão. Saber que somos amados por Deus e que Ele conta conosco para sermos reflexo do Seu amor no mundo... Humanismo alimentado pela fé, a fé vivenciada no nosso agir humano. Urge gritar ao mundo: não estamos sós e “Ele está no meio de nós”. Ele nos amou por primeiro, Ele não somente nos deu um projeto de vida, mas Ele deu a vida por nós. Aprendamos a viver n’Ele, por Ele e com Ele. Amar é sair de si e ir em direção ao outro.

Como vê a perda de tantos brasileiros na pandemia? Os governos deveriam ter sido mais céleres nas decisões? Que exemplo no mundo poderia ser usado no Brasil?

A perda é sempre dolorosa e intrigante. Sempre poderíamos fazer mais. A responsabilidade é de todos, antes mesmo de buscar culpados, é preciso buscar soluções.

A união em torno de um projeto suprapartidário para mitigar os efeitos da pandemia nos próximos anos é possível?

Os que detêm o poder público devem se unir cada vez mais em prol da saúde do povo. Devemos fortalecer as instituições e não diminuí-las.

Em que medida a polarização política prejudicou o combate ao novo coronavírus?

A divisão sempre é perda: se perde o foco do essencial e nos perdemos em polarizações.

O Brasil enfrenta uma crise espiritual? Ela é causa ou efeito do que estamos vivendo hoje?

A crise da fé com certeza é mais profunda que qualquer outra. Como o homem se fecha em si, o autorreferencial se torna soberba, orgulho e autossuficiência. Poderíamos dizer que há no mundo uma pandemia de “falta de humanidade”. Quando o homem não tem tempo para Deus, não tem o devido olhar para os que o circundam. Mas diante de tantos desafios, não desanimemos. Reacendamos a chama da fé e acorramos Àquele que nos amou por primeiro. Para melhorar o mundo, todos precisamos mudar, “a começar de mim e de você” como dizia Santa Teresa de Calcutá.

O papa Francisco disse, em tom jocoso, que o Brasil  “não tem salvação. É muita cachaça e pouca oração”. O que o senhor pensa?

O Santo Padre ama os brasileiros e brincou com essa colocação, mas faz refletir sobre quanto tempo dedicamos para falar com Deus, para rezar.

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