Crônica da Cidade

A Brasília do meu pai

Severino Francisco
postado em 13/09/2021 22:46

Em 8 de agosto deste ano, escrevi uma evocação sobre meu pai, também Severino Francisco, sertanejo pernambucano, pastor presbiteriano e poeta, repentista. Meu irmão gravou um video em que ele recita poemas que vendia em folhetos nas praças de Taguatinga, nos tempos épicos da construção de Brasília. É um precioso legado sentimental e poético. Suspeito que o meu pai pode ter sido, senão o primeiro, um dos primeiros cronistas de Brasília.

Meu pai era uma figura quixotesca, veloz de instinto e delirante de imaginação. Contabilizava o salário em termos de livros e revistas que podia comprar. Algumas vezes, não sobrava para as despesas do mercado. A minha mãe reclamava, mas, rapidamente, meu pai sentava-se à frente da máquina, inventava uma narrativa de cordel, ia até a gráfica para imprimir, montava na lambreta e se dirigia às praças para vender os folhetos.

À tarde, retornava com a lambreta abarrotada de compras e os bolsos cheios de dinheiro. Na crônica de 8 de abril, mencionei os versinhos jocosos e surreais que meu pai escrevinhou sobre o drama da moradia das classes populares nos tempos da construção de Brasília. Os trabalhadores inventavam nomes bizarros para batizar as ocupações.

Meu pai vestia a máscara dos candangos e entrava no jogo: “Morei na Curva da Onça/e temendo ser assaltado/levei a minha mudança/para o Quintal do Delegado/De lá fui despejado/mudei-me para Sapolândia/hoje moro na Ceilândia/na Vila do Cachorro Sentado”.

Pois bem, o leitor Emanuel Lima, autor de dois livros sobre Brasília, me enviou mensagem confirmando os versinhos do meu pai. A Curva da Onça está na Comercial Norte de Taguatinga, entre as QNE e as QND. No início da década de 1960, a cidade terminava ali, lembra Emanuel. Então, o ônibus (que, na época, era uma jardineira) fazia uma curva para retornar. Naquele local, havia uma parada de ônibus.

Em uma manhã fria de junho, antes de o Sol nascer, apareceu uma onça sentada sobre as patas traseiras, que olhava ao redor. Ao raiar do dia, ela despareceu no meio do cerradão bravo. Aquele lugar virou a Curva da Onça.

A Sapolândia era situada em Taguatinga Sul, próximo ao córrego do mesmo nome, não muito longe do atual Parque Vivencial Onoyama. Na década de 1980, aquela invasão foi transferida para o Setor QNL, com o nome de Chaparral, filme de faroeste em preto e branco. A Vila do Cachorro Sentado é o atual Setor O, da Ceilândia.

Naquela época, só havia um ônibus que passava por lá e vinha sempre lotado. Os passageiros que embarcavam no centro da cidade ficavam irritados com as pessoas que viajavam sentadas. Então, eles diziam: “Estamos viajando em pé, enquanto esses cachorros do Setor O viajam sentados, só porque o terminal do ônibus está lá”. Como se vê, os nomes estão carregados de história.Valeu, Emanuel.

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