Crônica da Cidade

por Severino Francisco severinofrancisco.df@dabr.com.br (cartas: SIG, Quadra 2, Lote 340 / CEP 70.610-901)

Correio Braziliense
postado em 21/09/2021 22:31 / atualizado em 21/09/2021 22:32

Apocalipse em Taguatinga

Enquanto o mundo explode, o recebimento do volume magrinho de Crônicas de Taguatinga, de Emanuel Lima, reacendeu-me a memória sobre um dos acontecimentos mais marcantes e dramáticas da minha infância. Nós morávamos em Taguatinga Norte e vivíamos uma manhã tranquila.

De repente, ouvimos um zunido de foguete e, em seguida, um facho de fogo ascendia aos céus com o barulho de explosões no espaço. Meu pai era pastor presbiteriano, eu estava impregnado das prédicas e das imagens bíblicas do Apocalipse de São João, um dos meus livros preferidos, fonte de toda a literatura fantástica. Parece que estávamos no meio do fim do mundo.

Ficamos muito assustados e saímos todos de casa para ver o que acontecia. Logo, vimos que o chiado de foguete era de bujões de gás, que riscavam o céu matinal de Taguatinga e estrondavam estardalhaço. A minha mãe nos agarrava, e nós tremíamos aterrados embaixo de suas asas protetoras. A situação serenava por instantes, mas, em seguida, novo zunido de foguete e outro bujão estrondava no espaço.

Naquele tempo, Taguatinga era uma cidade envolvida em nuvens de poeira mutantes. A cada instante, em um átimo, o vento rodopiava, arrastava pó avermelhado, formava redemoinhos e saia turbilhonando pela cidade. Eram os chamados lacerdinhas. Meu pai costumava gastar todo o salário em livros e revistas. Quando a minha mãe, enfermeira, filha de sertanejos baianos e mineiros, mulher previdente, descobria o rombo nas finanças, esbravejava.

Mas o meu pai era veloz e instintivo. Rapidamente, sentava-se à frente da máquina, escrevia folhetos, montava na lambreta e se dirigia ao centro de Taguatinga para recitar e vender os folhetos. À tarde, voltava com os bolsos abarrotados de dinheiro e a lambreta carregada de produtos do supermercado.

Certo dia, meu pai se encontrou com Juscelino Kubitschek em Taguatinga e fez a seguinte saudação de improviso: “Quero lhe cumprimentar/Brasília é um monumento/Trabalho de nossa gente/Bravura de bandeirante/cabeça de presidente/agora posso afirmar/que vi a redenção/meus filhos tomaram posse/da terra da promissão/foi a mão da providência/que regeu vossa excelência/para governar nossa nação.”

O episódio da explosão está vivo em minha memória, mas envolvido na névoa do tempo. No entanto, ele foi reavivado com a exatidão factual em texto da coletânea Crônicas de Taguatinga, de Emanuel Lima. Ele informa que o evento ocorreu em 1961: “De repente aconteceu. Foi uma explosão violenta. Aquela nuvem de fumo espessa e escura se abrindo para o céu como uma árvore e alguns botijões incandescentes voando e caindo como laranjas.”

Emanuel relata que a explosão do depósito jogou respingos em cima do povo e atingiu um caminhão inflamável que carregava combustível para reabastecer um posto de gasolina. O caminhão voou pelos ares à altura da CSB 3 e caiu na Avenida Central. Algum gaiato ainda escreveu com um spray sobre a carcaça do caminhão: foguete de Taguatinga. Felizmente, ninguém se feriu com gravidade, e o mundo não acabou.

 

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