Crônica da Cidade

Onde estão os engraxates?

Correio BrazilienseAdson Boaventura
postado em 24/09/2021 21:34

Por onde andam os engraxates do Distrito Federal? Será que foi mais uma atividade afetada pela pandemia? Lembro-me que antes da crise sanitária era comum encontrá-los, seja em bares, restaurantes, na porta de agências bancárias ou simplesmente perambulando pelas ruas em busca de clientes.

Acho que ainda deve haver alguns em lugares fixos, talvez na Câmara dos Deputados ou no Setor Comercial Sul. Mas e os engraxates ambulantes? Daqueles que te abordam perguntando: bora engraxar? Um amigo gaiato costumava responder: “hoje não, me dei uma folga, esqueci minha caixa”.

Não que eu fosse um grande usuário do serviço, dificilmente uso sapato social. Mas em algumas ocasiões gostava de ajudá-los com algum trocado. Lembrava que meu pai havia sido engraxate, em São Paulo, e isso me comovia. De certa forma, criava empatia com eles e, às vezes, conversávamos sobre a vida. Foi assim quando um deles engraxou meus sapatos pela última vez, há alguns anos.

Era um dia quente, como os atuais. Refrescava-me tomando uma cerveja em um boteco perto de casa. Não lembro o nome do engraxate, mas vamos dizer que era Edmilson. Ele começou a passar a graxa em meu sapato direito. Um minuto depois, bateu na caixa para sinalizar que eu deveria colocar o sapato esquerdo na plataforma de madeira. Foi quando decidi puxar papo.

“Meu pai começou a trabalhar como engraxate. Depois virou assistente de pedreiro. Fez um curso de datilografia e conseguiu emprego em um banco. Trabalhou mais de 20 anos por lá, virou até gerente”, comentei, me sentindo um pouco idiota. Ele sorriu e falou que também tinha sido assistente de pedreiro. Mas nesse trabalho, Edmilson recebia R$ 30 por oito horas de trabalho. Nem pagavam o almoço. Ele ia comer em casa, após o expediente, com os pais e seus 16 irmãos. “Dezesseis?”, perguntei, impressionado. E ele me respondeu que sim, com um sorriso tímido, desfalcado e ao mesmo tempo espontâneo.

Era praticamente trabalho escravo. Então, Edmilson decidiu engraxar sapatos. Disse que chegava a ganhar R$ 100 por dia na nova função. Com esse dinheiro, ajudava a sustentar a casa. Seu irmão de 8 anos pedia uns trocados na rua para ajudar no orçamento. O pai deles sofreu um acidente há anos e não podia trabalhar. Estava dirigindo, quando foi fechado por outro carro. Desviou em direção ao poste para não atropelar ninguém. O poste caiu em cima do carro e incendiou o pai de Edmilson, que passou um bom tempo no hospital. Ele ficou com sequelas do acidente e não podia mais sair de casa. Esqueci de perguntar sobre sua mãe e seus outros irmãos, se eles não trabalhavam ou se ajudavam de alguma forma. Ele também não falou sobre essa parte.

Lembrar de meu pai me fez iniciar toda a conversa e colocar-me no lugar de Edmilson. Com empatia, temos ao menos algum diálogo com o outro, o que já é um grande passo. Esse bate-papo foi muito antes dos tempos de covid. Deste então, nunca mais o encontrei. Infelizmente, não sei se o sumiço dos engraxates na pandemia seja algo positivo: se eles conseguiram algum trabalho melhor, por exemplo. Muito provavelmente, não.

 

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