História da chuva
Que dádiva uma chuva depois de uma temporada de aridez terrível — com certeza, agravada pelas queimadas de florestas e pela derrubada de árvores. É impressionante como uma simples chuva renova as plantas. Já foi possível vislumbrar o renascimento de algumas espécies no quintal se insinuando, o que não ocorre mesmo com a aguação contínua.
A chuva reavivou evocações sobre algumas intempéries que vivi na cidade. Certa vez, pedi a uma estudiosa do tarô que jogasse as cartas para mim. Era impressionante: sempre saíam duas cartas — a do sacrifício e a da estrela. A mulher fez a seguinte interpretação: minha sina era a de conquistar tudo com muito trabalho, com muito suor, com muito sacrifício.
Fiquei meio desconsolado com o que o destino me reservava. Mas ela discordou e argumentou que, ao fim, venceria as dificuldades, porque eu tinha estrela. Não sou um crédulo, submeto tudo ao crivo da razão e desconfio dos meus rompantes.
Mas, depois de examinar os fatos, tendo a avaliar que a mulher do tarô tinha razão. Vejamos o caso da construção da casa em que moro, situada em um condomínio horizontal, fronteiriça a uma mata cerrada. Sem exagero, foi um acontecimento épico. Eu tinha um salário modesto, fazia mestrado à tarde e frilas de madrugada.
Tudo que ganhava era transformado em tijolos, caibros, vigas, sacos de cimento, cerâmicas e telhas. No limite, tivemos de vender o carro, numa decisão dramática, porque o ônibus parava a uma distância de três quilômetros de onde eu morava. Eu descia e percorria todo o trecho a pé. Para economizar e aguentar o tranco, comprei um par de botinas.
Registrei a experiência no poema De volta pra casa (pensando em Rimbaud), que consta do meu livro recém-lançado, Flama: “No meio das nuvens de poeira / levantadas pelos pneus dos carros / com as botinas sôfregas / derrapando na pista pedregosa / e os bolsos cheios / de versos amarfanhados / sentindo bater na pele / o coração gelado da noite / extraviado no espaço / chutando estrelas na estrada”.
O período das chuvas era o mais sujeito a imprevistos e contratempos. Estava tudo tranquilo quando, de repente, abruptamente, desabava um temporal. A estrada de barro se transformava em uma enxurrada caudalosa, que arrastava tudo pela frente. Para vencer alguns trechos, eu precisava colocar a sacola no alto e fazer a travessia como se fosse um Indiana Jones do cerrado.
A chuva fustigava tanto que eu nem me importava mais, deixava que ela caísse e escorresse pelo corpo. Em uma dessas tardes, cheguei ao condomínio encharcado e passei em frente à casa do meu amigo americano Everett Lee. Ele tinha três traços distintivos: o dom da amizade, a defesa brava do meio ambiente e o gosto de pontuar a conversa com os mais cabeludos e impublicáveis vocábulos da língua portuguesa.
O síndico conversava com Lee quando eu passei e comentou: “Ele está devendo o condomínio e vou botar o caso na Justiça”. Lee ficou indignado e disparou, com a autoridade de xerife do condomínio: “PQP! Não vai colocar na Justiça nada. Esse cara é um herói do condomínio, nenhum de nós tem a coragem de fazer o que ele faz. Depois de construir a casa, ele paga a dívida ao condomínio”.
De fato, consegui erguer a casa e, logo em seguida, acertei minha pendência. Sim, eu acho que a mulher do tarô tinha razão. Puxa, que grande amigo. O Lee só teve o péssimo defeito de nos deixar.
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