Salvo pelos pastéis
Enquanto o mundo explode, lembrei de uma história do poeta Ferreira Gullar. Ele passou por Brasília, no período da construção da cidade, e foi o primeiro diretor da Fundação Cultural. Eram tempos épicos em que as coisas mais simples exigiam malabarismos para serem realizadas.
Gullar pretendia aliar a tradição ao que havia de mais experimental na cultura. Organizou salões de artes plásticas vanguardistas e trouxe a Escola de Samba da Mangueira. O regime militar atropelou tudo. Mas ficaram alguns vestígios de sua passagem. Um deles são aquelas garrafinhas coloridas, vendidas na Feira da Torre de Televisão, trazidas pela primeira vez por Gullar, de sua terra natal, São Luís do Maranhão.
Gullar era pura tensão entre racionalidade e passionalismo. Parecia uma boeing, demorava a decolar, mas quando saia do chão, voava alto e longe. No livro A luta corporal, publicado aos 20 anos, ele queria implodir com a linguagem para chegar até o coração da vida: “Flores diurnas, minhas feras/Estas são as máquinas do voo/A pele se incendeia em vosso inferno verdadeiro/Eu te violento, chão da vida/Garganta do meu dia/Em tua áspera luz/Governo meu canto”.
No entanto, ao implodir com a linguagem, Gullar se deparou não com a fonte da vida, mas, sim, com o nada. E decidiu retomar o fôlego fazendo versos de cordel. Neste sentido, a estada brasiliense foi crucial.
Mas Gullar voltou à cidade muitas vezes realizando palestras para estudantes. Em um desses encontros, ele contou uma intrigante história sobre os limites da razão em nossas vidas. Certo dia, estava na casa de um amigo, o crítico Mário Pedrosa. Lá, se reunia uma constelação de intelectuais brilhantes, naqueles anos 1960 de convulsões, de contradições, de turbulências, de inconformismos e de revoluções por minuto.
Mário Pedrosa e os amigos se dedicaram a uma acurada análise da situação política no Brasil e no mundo pelo método dialético e chegaram a conclusões um tanto pessimistas sobre o destino da humanidade.
Gullar ficou deprimido com a conversa e resolveu ir para o quarto de pensão que dividia com dois amigos, o cronista Carlinhos Oliveira e o crítico Oliveira Bastos, que, mais tarde, seria editor-chefe do Correio Braziliense. A ideia de suicídio germinou, ganhou força e tomou conta da cabeça. Sentou-se na cama e repisou as argumentações apresentadas no encontro. Quanto mais repassava a conversa, mais ganhava força a ideia do suicídio.
Todavia, de repente, ele avistou um saquinho com meia-dúzia de pastéis de banana em cima de uma mesa, comprado por um dos amigos com quem dividia o quarto. Já que não estava fazendo nada, decidiu experimentar um pastel, sem muita vontade, de maneira aleatória.
“Até que não está tão mal”, pensou. E resolveu provar mais um. Em resumo: não sobrou nem um pastel no saquinho encharcado de gordura. Gullar se aquietou com uma leve sensação de saciedade e bem-estar. Percebeu que a vontade de morrer havia se evaporado misteriosamente. Na verdade, ele estava se sentindo muito bem e lhe bateu um estalo fulminante. Que m... de dialética é essa que não resiste a meia-dúzia de pasteizinhos de banana!
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