Crônica da Cidade

Severino Francisco
postado em 30/09/2021 23:16 / atualizado em 30/09/2021 23:16

Cartas da pandemia

O período de confinamento imposto pela pandemia não foi improdutivo para todas as pessoas. Existem aquelas que mergulharam na solitude e tentaram ouvir o que esse tempo dramático tinha para dizer. E, principalmente, auscultaram o ritmo, a pulsação e os clamores da natureza. Porque o transe que o novo coronavírus instalou está radicado em uma crise ambiental.

E esse é o caso de Eugênio Giovenardi, gaúcho-brasiliense, sociólogo, filósofo, teólogo e amante da natureza. Ele se autoinsulou no Sítio das Neves, no coração do cerrado, e escreveu uma infinidade de missivas, que reuniu no livro Cartas da prisão (Editora Kelps), em que compartilha reflexões, vivências, epifanias com a natureza e alertas sobre a situação dramática na qual estamos mergulhados.

É uma mirada em que alia o olhar do cientista e a do cronista aberto à imprevisibilidade e ao mistério da natureza: “Fomos atacados pelo vírus!”, disse uma voz. “A ignorância sobre o minúsculo invasor apalermou o homem sapiente. Aos poucos, adotei uma atitude zen. O que glorifica o homo sapiens é aceitar a própria ignorância para chegar à ciência e à sabedoria.”

Em outra crônica, Giovenardi viaja, na imaginação, até a Atenas de 399 de antes de Cristo, para consultar o filósofo Sócrates sobre o que deveriam fazer os confinados pela pandemia para se protegerem do vírus: “Conheça-te a ti mesmo, detento preferencial, disse-me”.

E o diálogo sobrenatural continua: “Andaste por toda Atenas, Sócrates, tocando lira e recitando versos de Homero, a perguntar aos jovens e aos velhos sobre tantas questões. Por quê?”, indaga Giovenardi. E Sócrates responde: “Porque sei que nada sei! A ignorância é o ponto de partida”. Giovenardi arremata: “Por aqui, Sócrates, pensa-se que a ignorância é o ponto de chegada”.

A ideia de uma volta ao normal ou de uma adaptação a um novo normal são rechaçadas por Giovenardi, a partir de uma reflexão sobre as nossas ações contra a natureza, fonte dos desequilíbrios, da fuga dos animais silvestres para os espaços urbanos e do contágio de vírus perigosos para os humanos: “Está vigente, porém, a lei inscrita no código natural: todo ser vivo quer sobreviver. Nós e o vírus. Os fenômenos naturais independem da vontade e da organização do homo sapiens. Quem dirige a organização da espécie humana são as leis físicas da natureza. Contrariar essas regras é um grave erro e um risco de consequências trágicas”.

No âmago do cerrado, entre árvores que meditam em silêncio, mirando a beleza estonteante das caliandras, Giovenardi devaneia: “Viver a biodiversidade não é apenas constatar que existem outros seres. É, sim, aceitar a interdependência dos seres vivos e interagir com eles no mais alto patamar da vida. Há paz semeada pelas árvores. Vou colhê-la”.

Giovenardi não percebe a morte desencadeada pela pandemia como um fato depressivo. Ele tenta extrair do trágico um alerta e um alento para a construção de um futuro melhor para a humanidade: “A morte nos pede um novo olhar diante da vida. Um novo olhar sobre a natureza. Uma atitude humilde e sábia diante da realidade. O hoje foi programado ontem. O amanhã depende do hoje. O presente é o melhor presente que a vida nos oferece. A vida é um milagre”.

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