A pane e o beijo
As redes sociais sofreram uma pane, e o mundo entrou em pânico durante sete horas, na tarde de ontem. Em pouco tempo, os prejuízos foram imensos, lojas virtuais ficaram paralisadas, restaurantes entregaram menos comida, ações de empresas despencaram na bolsa e o bilionário Marc Zuckerberg, dono do Facebook, perdeu alguns bilhões e deixou de ser a quarta pessoa mais rica do mundo.
A geração dos meus pais assistiu a mudanças lentas. Mas o ritmo da invenção das tecnologias da comunicação se acelerou, de maneira estonteante, nas últimas décadas, e provocou mutações vertiginosas nos valores, nos comportamentos e na relação com a política.
Com o apagão, uma representante da vanguarda do atraso, fez uma ameaça apocalíptica para defender o voto impresso: “Já pensou se isso ocorre durante a eleição com urnas eletrônicas?”. Se fosse verdadeira a lógica da moça, teríamos de renunciar aos aviões a jato e nos movermos de carroça, pois sempre haveria o risco de uma pane.
Certamente, se ocorresse uma queda nas redes sociais às vésperas de uma eleição, seria bom para a democracia, pois o número de fake news cairia drasticamente. As redes sociais são meios fantásticos de comunicação, mas não podem permanecer uma terra sem lei, precisam ser civilizadas e regidas por regras semelhantes às que regulam o funcionamento da imprensa profissional. Não são perfeitas, no entanto, responsabilizam os autores de leviandades e garantem um mínimo de respeito aos direitos e à democracia.
Eu estava devaneando, erraticamente, sobre essas questões quando recebi um video produzido pelo Instituto Moreira Salles sobre o marceneiro Jaime Vilaseca. Ele foi chamado para construir uma estante de livros para Clarice Lispecor. Ela ficava calada quase o tempo todo. No entanto, em um átimo, disse para o marceneiro que ele estava fadado a fazer molduras de quadros. E a profecia se cumpriu.
No video, o amigo de Clarice lembra que contou para ela uma história da adolescência, que se transformou no belíssimo conto O primeiro beijo. Jaime viajava com o pai numa subida de serra para Niterói quando o carro aqueceu muito e tiveram de parar em um acostamento. Hoje, é mais raro um carro apresentar esse problema mecânico, mas, naquela época, era muito comum.
O então adolescente sentiu uma sede terrível e buscou, desesperadamente, água para se saciar. Acompanhemos a narrativa sob o olhar de Clarice: “O instinto animal dentro dele não errara: na curva inesperada da estrada, entre arbustos estava... o chafariz de onde brotava num filete a água sonhada. O ônibus parou, todos estavam com sede mas ele conseguiu ser o primeiro a chegar ao chafariz de pedra, antes de todos.”
E continua: “De olhos fechados entreabriu os lábios e colou-os ferozmente ao orifício de onde jorrava a água. O primeiro gole fresco desceu, escorrendo pelo peito até a barriga. Era a vida voltando, e com esta encharcou todo o seu interior arenoso até se saciar. Agora podia abrir os olhos. Abriu-os e viu bem junto de sua cara dois olhos de estátua fitando-o e viu que era a estátua de uma mulher e que era da boca da mulher que saía a água. Lembrou-se de que realmente ao primeiro gole sentira nos lábios um contato gélido, mais frio do que a água.”
Olhou para a estátua nua. Ele a havia beijado: “Até que, vinda da profundeza de seu ser, jorrou de uma fonte oculta nele a verdade. Que logo o encheu de susto e logo também de um orgulho antes jamais sentido: ele... Ele se tornara homem.”
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