Uma noite digital
— Posso chamar o aplicativo?, pergunta Joana, ainda à procura do anel que poderia combinar com a calça e a blusa pretas.
— Seria bom. Estamos atrasados. O combinado era chegarmos 9h. E já são quinze para as nove, avisa André.
Joana e André decidiram recorrer a um serviço de aplicativo para se sentirem mais à vontade no bar. A noite não seria nada agradável se fossem flagrados na blitz da Lei Seca. Mas é preciso acrescentar cerca de R$ 100 na conta, valor aproximado de uma corrida de ida e volta entre Águas Claras e Asa Sul naquele horário. Melhor incluir essa despesa na conta do que pagar uma multa de R$ 3 mil, mais a suspensão da carteira. Está tudo certo.
— O aplicativo está dizendo que Ciro, o motorista, chega em 5 minutos. Vamos descer?
Joana e André descem à portaria. E já vem a primeira surpresa. Um carro preto, limpo, de pneus reluzentes, aguarda passageiros.
— Mas o carro de Ciro é um Nissan Versa, observa Joana.
— Vamos aguardar, pondera André, com o olhar ansioso no relógio. São 20h55.
Às 20h57, Ciro envia mensagem preocupante. Diz que pegou um passageiro errado. E que está voltando para o prédio em Águas Claras. Joana e André avaliam se é o caso de cancelar a viagem. Ainda mais porque outro motorista, o do carrão preto, estava ali, esperando. A conclusão era óbvia: o passageiro do carro preto embarcou no Nissan Versa do nosso amigo Ciro. São 21h10. O plano é mantido.
Ciro volta ao prédio de Águas Claras. E, finalmente, Joana e André seguem viagem para o Plano Piloto.
Chegam ao bar na 409 Sul.
— Vamos pedir?, pergunta Joana, pouco depois de sentar no agradável ambiente.
— Senhora, nosso cardápio é digital. É só apontar o celular para o QR Code, explica o solícito garçom.
Joana obedece à sugestão. Mas há um problema. Assim que ela mira o celular na mancha gráfica, aparece a propaganda de uma operadora de celular. Ela pede informação ao funcionário do bar.
— Moço, não tenho interesse em utilizar o wi-fi do bar. Obrigada. Só queria ver o cardápio.
Passados os dois primeiros percalços com a tecnologia, Joana e André curtem a noite. Aproveitam a companhia de um casal amigo, que fora convidado — em um rápido texto no aplicativo de mensagem — para jogar conversa fora naquela noite de sábado.
O bar precisa fechar. É meia-noite. Mas o decreto não havia sido revogado?, pergunta Joana. Ninguém sabe mais o horário de funcionamento de nada. Cada semana muda. Coisas da pandemia.
Os quatro amigos saem do bar, mas ainda com vontade de esticar a conversa. É preciso aproveitar. Afinal, ninguém está dirigindo. Somos todos modernos, viemos de aplicativo.
Por sorte, o grupo encontra, ao lado, outro bar. Mas o ambiente é totalmente diferente. Só havia jovens, já bastante animados com doses de álcool e música alta.
Os quatro sentam à mesa. Vem uma jovem garçonete, que pergunta se os novos clientes fizeram o registro à entrada do estabelecimento. Negativo.
— Basta apenas um de vocês se registrar no nosso aplicativo. E vocês podem pedir pelo celular, explica a simpática funcionária.
— Mas não consigo finalizar o cadastro no meu celular, responde André. Está travando.
— Então, vamos fazer assim: o que vocês vão querer?, pergunta a garçonete, ante mais um contratempo digital.
Após mais algumas doses, os quatro amigos se despedem. Joana e André voltam para casa perto de 1h30.
Desta vez, não houve surpresas no embarque. O motorista contou, neste fim de noite digital em Brasília, como foi corrida que ele fez de Brasília a Goiânia. Ida e volta. Os clientes eram passageiros que haviam perdido o voo no Aeroporto de Brasília porque a companhia havia praticado overbooking.
Será que foi problema de tecnologia?
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