Crônica da Cidade

por Severino Francisco severinofrancisco.df@dabr.com.br (cartas: SIG, Quadra 2, Lote 340 / CEP 70.610-901)

Amor e amizade

As invenções tecnológicas nos abriram muitos portais e infinitas possibilidades, no entanto, nos lançaram também no turbilhão de um mundo esvaziado de valores, cada vez mais seduzido por um estilo de vida pós-humano. Sem nenhum espírito nostálgico, há 17 anos um grupo de pensadores, comandado por Adauto Novaes, trava um corpo a corpo dramático com essas mutações em ciclos de palestras.

“A tecnociência faz o que nenhuma predicação ou discurso ideológico conseguiu fazer: o celular reúne todos em torno de um só objeto, mas, ao mesmo tempo, os dissolve na solidão individual, expressão de um verdadeiro ‘egoísmo organizado’”, escreve Adauto, no programa do ciclo Dissonâncias do progresso, que esteve de passagem por Brasília, em 2017.

Mas eu queria me deter em um pequeno e brilhante ensaio escrito por Francis Wolff, publicado no recém-lançado volume de ensaios Mutações – Entre dois mundos (Ed. Sesc). O tema do professor de filosofia da École Normale Supérieure, em Paris, é a amizade. Sigamos Wolff. Ser perfeitamente feliz, para os antigos e, particularmente para Aristóteles, é ser acabado, autossuficiente. É ser como um sábio que não tem necessidade de nada, lembra o mestre francês.

Ele enfatiza que o homem não pode ser feliz sem amigos, como tampouco poderia sê-lo se fosse doente ou miserável. “Isso prova que a amizade é um componente da felicidade, nem mais nem menos que a saúde ou a riqueza. O homem feliz é completo, justamente graças a seus amigos.”

Contudo, Wolff tem o cuidado de estabelecer uma distinção entre a amizade e a utilidade: “O amigo é algo mais. Nada se espera dele e, sobretudo, nenhum ‘favor em troca’. Essa é mesmo a única autêntica e pura definição do amigo, do amigo puro e autêntico”.

O amigo não é o vizinho, não é o concidadão nem o próximo. Não é qualquer um, nós o escolhemos e ele nos escolheu. “Isso não significa em absoluto alguém que se assemelha a mim, como se acredita com frequência. O amigo é antes aquele que me ajuda a mostrar-me como sou.”

Uma das partes mais interessantes do ensaio é aquela em que Wolff discorre sobre as semelhanças e dessemelhanças entre amizade e amor. O que diferenciaria a amizade do amor? “À primeira vista, pode-se dizer que o amor se distingue da amizade por um traço essencial: o desejo. O amor seria uma espécie de amizade desejante ou de desejo amical.”

No entanto, Wolff alerta que embora uma amizade sem desejo nada tenha de amor, um amor sem amizade também pode ser destrutivo: “A amizade é sem desejo, no entanto, é um componente essencial do desejo, sem o qual ele se torna violência”.

Wolff traça todo esse sinuoso percurso para fazer um incisivo elogio da amizade: “Seria absurdo definir o amor como uma espécie de amizade à qual se acrescentam o desejo e a paixão, porque seria implicitamente definir a amizade como uma espécie de amor em que falta alguma coisa. Ora, à amizade não falta nada, justamente! E é o que explica sua estabilidade por oposição à precariedade do amor”.