O sítio encantado

Correio Braziliense
postado em 06/12/2021 00:00 / atualizado em 06/12/2021 00:00

Cada vez mais a obra e a figura de Burle Marx se tornam dramaticamente atuais. Enquanto as queimadas da Mata Atlântica e da Floresta Amazônica avançam, os nossos governantes optam por um ardil de avestruz: querem esconder o óbvio.

Em vez de tomar providências efetivas para barrar a devastação, tentam negar o que o mundo inteiro monitora por satélite. Mas, no meio do ano, fomos agraciados com uma notícia feliz, que ainda repercute em mim: o Sítio Santo Antônio da Bica, adquirido por Burle Marx em Barra do Guaratiba, em 1949, no Rio de Janeiro, recebeu o título de patrimônio cultural da humanidade. É uma riqueza e uma proteção contra a ignorância triunfante.

O centro abriga cerca de 3,5 mil espécies tropicais e subtropicais em uma área de 40 mil metros quadrados. Ele foi um ponto de experimentação das experiências de Burle Marx que lhe valeram o reconhecimento de mais importante paisagista do século 20. Esse é um lugar que eu gostaria de conhecer depois da pandemia.

Neste momento de trevas, temos de voltar muitas vezes a Burle Marx para aprender as lições de um mestre da natureza. Em depoimento ao Senado Federal, disse em 1976: "A vegetação autóctone está sendo devastada a passos de gigante. Uma simples máquina de fazer estradas destrói em minutos o trabalho de séculos da natureza. E o pior é que arrasam para plantar depois árvores que não têm nada a ver com a paisagem".

É uma pena que não lhe tenha sido concedida a oportunidade de executar um plano paisagístico completo para Brasília. Mesmo assim, ele deixou a marca do seu talento no Palácio do Itamaraty, no Teatro Nacional, no Palácio da Justiça, na 308 Sul.

Em Brasília, é preciso compreender o clima, não se pode modificá-lo, ensinava Burle:"Se eu construo uma cidade num lugar onde a terra abriga uma flora característica, eu não posso transformá-la em Champs Elisées ou Hyde Park. Dizer que o cerrado não pode ser uma maravilha é um erro. Acho-o uma beleza, apenas deve-se compreendê-lo como ele é".

Em 1976, Burle viajou de carro por Minas Gerais, Bahia e Espírito Santo. Ficou estarrecido com a magnitude do desmatamento ao longo de 4 mil quilômetros para retirada das árvores de valor comercial. Com isso, a fauna também é exterminada. Naquela época, ele já previa uma drástica mudança climática, a erosão do solo, com grande perda de nossos mananciais e calcinação da camada fértil da terra. Uma marcha para desertificação inapelável.

Depois dessa viagem, Burle concedeu uma entrevista à revista Veja, que parece uma mensagem do outro lado da vida para os nossos governantes, falsos patriotas, ignorantes, tolos, falastrões covardes que ameaçam a democracia, mas destroem as riquezas naturais do país e empobrecem as próximas gerações: "Creio que é tempo de o Brasil aprender a amar a natureza — as florestas, os rios, os lagos, os bichos, os pássaros", disse Burle. "Creio que é preciso reformular nosso conceito de patriotismo. Patriotismo, para mim, é proteger o nosso patrimônio. Artístico, cultural, e a terra, que nos dá tudo isso".

E talvez seja necessário também reformular o conceito de cristão dos falsos cristãos no poder, que invocam os santos nomes em vão, mas destroem a natureza sem piedade, como trogloditas pré-históricos: "As plantas fazem parte de uma organização que os religiosos chamam de Deus".

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