Passamos a observar mais a vida pela janela durante a pandemia. Lembram-se das apresentações musicais nas sacadas? Também teve quem assistiu das varandas serenatas preparadas por entes queridos. Belas formas de amenizar o período de isolamento durante o início da crise sanitária.
Na minha varanda, eu ouvi: "Eu não aguento mais, quero sair". Ou alguém em situação de rua gritar: "Por favor, uma ajuda. Estou passando fome. Tenho família. Qualquer ajuda". Devia ter gravado, como fez recentemente um morador do Plano Piloto.
Também da varanda, ouvi os barulhos da madrugada. O pessoal do SLU ou gente com fome abrindo e batendo as tampas dos contêineres dos condomínios. As discussões familiares, festas ou qualquer outra gritaria vinda dos prédios vizinhos. Um jovem casal exibicionista transando na sacada. Ou um grupo de amigos falando em voz alta até o amanhecer. A mulher solitária que fuma sozinha na janela. Um barulho de explosão, seguido por queda de energia — um ônibus derrubou um poste, o motorista passou mal e apagou ao volante, ouvi dizer.
Houve, ainda, barulho de arrepiar a espinha. Um som foi grave, estrondoso, seguido de gritos e pedidos de ajuda ao céu. Na sequência, veio o barulho de sirene da ambulância. Passada pouco mais de uma hora, vi o silêncio da luz vermelha giratória, que iluminava a noite, e a poça de sangue a escorrer pela calçada. Um lençol branco cobria o corpo.
Aos sábados, um senhor exótico descia até o térreo com um megafone para cantar umas músicas religiosas. Parecia um mulá chamando os fiéis para a mesquita. Há algum tempo, ele não faz mais isso. Deve ter ficado mais esperançoso com a vacina ou com alguma mensagem divina. Ou alguém resolveu esconder o megafone dele — teria feito isso se ele fosse meu parente. Espero que ele não leia esta crônica, ou vai inventar de cantar novamente.
Como foi o início da pandemia de sua varanda? As cenas malucas ou engraçadas dos vizinhos? Momentos de desespero? Lembram-se do silêncio nas ruas e de como elas voltaram, aos poucos, ao normal? Vale uma reflexão. Recentemente, o futebol foi o responsável pelo último momento de felicidade em minha varanda. Sou o único palmeirense (ou um dos) de uma rua repleta de flamenguistas. Com o Palmeiras campeão da Libertadores, gritei sozinho da janela, como um louco, também para extravasar todo o estresse de uma vida pandêmica. Coloquei o hino do Verdão para tocar na caixa de som por umas cinco vezes, para toda a rua rubro-negra escutar. Lavei a alma. Era noite, madrugada. Ninguém reclamou do barulho (desculpa aí, pessoal). Foram empáticos, talvez. Se fosse o Flamengo campeão, como eu reclamaria? Teria de aceitar os fogos até o amanhecer.
Enfim, quem sobreviveu a essa pandemia sem surtar merece algum prêmio. Não sei qual. Talvez o de continuar vivo e o de ter o direito de fazer algazarras na varanda. Todo meu sentimento a quem não está mais aqui por causa dessa maldita covid-19. Quem sabe um dia todos nos encontraremos em um grande condomínio no céu. E que seja uma grande festa, com todos confraternizando, como em uma final de Libertadores na qual todos saiam campeões. E que ninguém morra. Aliás, já estaremos todos mortos mesmo. Será uma grande festa no céu. Mas, se não tiver cerveja, vou preferir pegar o elevador e descer.
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