Amigo misterioso

Severino Francisco  
postado em 14/12/2021 00:01

Rubem Braga ficou célebre pelo mau humor bem-humorado. Era talvez uma defesa contra presenças inoportunas. E, por presenças inoportunas, entenda-se o restante da humanidade, exceção feita a meia dúzia de amigos seletos. É como se ostentasse os dizeres: "Cuidado, cronista feroz, ele morde".

Certo dia, o repórter e escritor Joel da Silveira, um dos seus melhores amigos, tentou convencer Braga a ser mais afável e ampliar o círculo de relações para além do velho clube de meia dúzia de camaradas: "Já me custa muito aguentar vocês", cortou Braga. Reza a lenda que, no lançamento de um dos seus livros, o cronista disse que ia ao banheiro, se mandou para a cobertura em Ipanema e não voltou mais.

Em 1988, Braga veio a Brasília para relançar, na antiga Livraria Presença, do Ivan, no Conic, uma edição de Crônicas da guerra, magnífico relato sobre as aventuras e desventuras dos expedicionários brasileiros da FEB, durante a campanha de resistência ao nazismo na Itália. Ao saber da notícia, o jornalista capixaba Sérgio Garschagen, radicado em Brasília, tomou a decisão de ser o primeiro a chegar para garantir o autógrafo.

Ele havia se encontrado com o cronista em outra ocasião, durante uma noite de autógrafos no Rio de Janeiro, na década de 1960, e Braga não tinha deixa boa impressão. Permanecera de semblante fechado, fazendo justiça à fama de animal intratável.

Mesmo assim, Garschagen considerava que o fato de ser também de Cachoeiro do Itapemirim era uma credencial nada desprezível. Ficou de tocaia na Presença e, logo em seguida, Braga efetivamente apareceu, acompanhado de um amigo, que Sérgio julgou vagamente ter visto em algum lugar.

Uma jovem estagiária abordou o cronista e iniciou um bombardeio de perguntas, a que ele respondia desinteressado e com evidente desconforto, só faltando bocejar durante o colóquio. Sérgio pagou o livro com um chegue e a funcionária da livraria que organizava a tarde de autógrafos passou o nome para Braga. Talvez para se livrar da repórter, Braga chamou Sérgio e, quando leu o nome, os seus olhos brilharam e o rosto se crispou: "Você é parente do Donaldson?". "Irmão", respondeu Garschagen.

Aconteceu uma mudança misteriosa na alma de Braga. O nome do irmão de Sérgio foi a senha para uma longa conversa, que passou pelas pescarias no Rio Itapemirim, as caçadas com o amigo João Madureira, o Correio do Sul, primeiro jornal em que ambos (Braga e Garschagen) trabalharam, as moças bravas que furavam as bolas de futebol nas peladas da infância, evocadas em várias crônicas, com o nome de irmãs Teixeira.

Animado pela prosa agradável, Sérgio pediu que Braga autografasse mais dois livros para os seus filhos, Mariana e Eduardo, ainda crianças naquela época, pois saberiam apreciar a relíquia quando fossem mais velhos. Ao lado, o amigo de Braga acompanhava silenciosamente o diálogo entre os dois cachoeirenses com uma paciência bíblica digna de Jó. Ao deixar a Livraria Presença, Sérgio ainda agradeceu ao anônimo camarada.

Mas, no dia seguinte, ao ler os jornais, o distraído Garschagen se deu conta da gafe que cometera. O sujeito que ele jogou para escanteio ao entabular a interminável conversa com Braga sobre as trivialidades de Cachoeiro do Itapemirim era o escritor José Saramago, que 10 anos depois, em 1988, ganharia o Prêmio Nobel de Literatura.

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