Ligia Cademartori

Severino Francisco
postado em 20/12/2021 00:01

Eu confesso que sinto muita falta da minha amiga Ligia Cademartori, que nos deixou em agosto de 2015. A sua paixão absoluta pela literatura contagiava. Ligia nasceu em uma casa em que se amava a leitura. A mãe devorava romances e adorava cinema. O pai cultivava a filosofia e a poesia.

Quando estava para morrer, em estado terminal, sobrevivendo à base de soro, a filha perguntou se ele precisava de alguma coisa. Ele pediu que abrisse o jornal e se aproximasse dele para que pudesse ler. Ligia argumentou que não era sensato, pois estava tomando soro e ele respondeu: "Fazer soro sem ler enlouquece".

Ao longo de sua vida, Ligia também enlouqueceria sem livros ao alcance dos olhos atentos e agudos. A paixão pela leitura transformou Ligia em uma das mais importantes pesquisadoras e defensoras da literatura infantojuvenil no país, que considerava a grande causa de sua vida. Ela morreu, após travar uma batalha de seis meses contra o câncer.

Ligia vivia em Brasília desde 1984 como uma monja, inteiramente dedicada à literatura. Ela veio para montar o Programa Nacional Salas de Leitura, que se desdobraria no atual Programa Nacional Biblioteca na Escola (PNBE). Os livros que escreveu sobre literatura infantojuvenil são referências essenciais para a compreensão do gênero: O que é literatura infantil (Ed. Brasiliense) e O professor e a literatura - para os pequenos médios e grandes (Autêntica), que ganhou o prêmio Cecília Meireles da Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil em 2010.

Gaúcha da fronteira, nascida em Livramento, doutora em literatura, lecionou na Universidade de Caxias do Sul e na Universidade de Brasília. Era uma intelectual de alta categoria, mas sentia-se desconfortável com a burocracia universitária e decidiu dedicar-se exclusivamente à literatura na condição de ensaísta e tradutora.

Fez a versão e adaptou Alice no país das maravilhas, de Lewis Carroll, Dom Quixote, de Cervantes e Jardim de versos, de Robert Louis Stevenson. A excelência do trabalho a levou a ingressar na Lista de Honra do International Board on Books for Young People, sediado na Suíça.

Não entendia apenas de literatura infantojuvenil, mas também de psicanálise a artes plásticas. Nos momentos finais de vida, ela escreveu O tempo é sempre (Ed. 7 Letras), um livro de poemas magro, mas denso, em que fala, de maneira serena e corajosa, da finitude e da iminência da morte. Não sabia que ela estava doente.

Pouco antes de sua morte, liguei e ela atendeu com uma voz rouca, dramática e afetuosa, a mesma que encontraria em seus poemas. O livro de poemas foi um presente dos deuses para quem se dedicou à literatura de maneira tão apaixonada. Ligia era séria nos compromissos, mas tinha um delicioso senso de humor.

Gosto muito de alguns versos que, em minha leitura, se referem à relação de Ligia com Brasília: "Mesmo agora, que és paisagem interna / quando te visito, não mais estrangeira, / tuas vias se confundem em minhas veias."

A ilustração, a inteligência, a verve, o afeto e a generosidade de Ligia fazem muita falta. Eu a conheci em uma mesa de debate no meio de uma polêmica acirrada da qual participei. Ela era a mediadora e manteve a isenção e o decoro da função. Mas, quando terminou a sessão em um encontro de literatura, ela me chamou, disse que se divertira muito.

E, assim, ficamos amigos, sempre demos muitas gargalhadas, com as ridicularias dos outros e com as nossas. Recentemente, encontrei o seu telefone em uma velha caderneta. Algumas vezes, me vem o absurdo desejo de ligar para a Ligia.

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