Crônica da cidade

Festejo incendiário

Ricardo Daehn
postado em 30/12/2021 00:01
 (crédito: Minervino Júnior/CB/D.A.Press)
(crédito: Minervino Júnior/CB/D.A.Press)

Desmerecido, em vida, entre os bicos profissionais e os dos filhos, que, por pouco, não batucavam nos pratos, vez por outra, vazios, o velho brigadista Manoel deixara um tesouro para a filha Naiara: o rádio de pilha que, por décadas, grudara em busca das vitórias para o desacreditado Íbis Sport Club. O pavio curto da filha, sempre expansiva e versada em berrar pelos corredores da Feira da Torre de TV, parecia refletir o avesso do sereno Manoel, ausente há sete viradas de ano.

As jornadas excessivas da temporada de fim de ano traziam pouca energia para a batalhadora vendedora sempre apegada ao ritual de se informar, engrossando a audiência do rádio comprado ainda à época dos cruzeiros. Foi nessas ondas que, em agosto, Naira soube da atrocidade transcorrida na Praça dos Orixás: Ogum teve a escultura queimada, num gritante vandalismo. O infortúnio para a imobilizada estátua, de certa forma, trazia um incômodo paralelo junto aos brasileiros aquietados, em 2021, pela pandemia e por provocações como a das jornadas estratosféricas dos preços da gasolina, do gás e da energia.

Num cálculo básico, as resoluções de fim de ano de Naiara já tinham saldo estabelecido a conta-gotas: integrante de um dos 300 terreiros registrados na capital, ela, entre banhos de ervas, investia nos recursos da lei. A intolerância frente às religiões afro-brasileiras contava com apoio de delegacia especializada e, na lei, "todos eram obrigados a ser feliz" — com penalização prevista de seis anos de prisão para os intolerantes incendiários. Daí, o ativismo e a mobilização comunitária de Naiara terem surtido relativo efeito: instâncias do governo foram chamadas à responsabilidade de vigilância e conservação de patrimônios culturais, como era o caso da Prainha.

Na reconsideração da memória, com alegria, em Naiara palpitava o respeito ao tempo de esclarecimentos do pai Manoel, sábio, ao investir na formação religiosa da menina, encantada pelas saias rodadas e as imagens sagradas de pretos que, com a doçura da infância, lhe remetiam a fabulações no universo das bonecas com as quais lidava. Nos curtos intervalos da jornada na feira, era dessas lembranças que, às vésperas de mais um ano novo, Naiara reiterava a crença em dias melhores. No fundo, para 2022, ansiava por consulta pública que revalidasse votos, num tanto faz de urna, fosse eletrônica ou na base do papel.

Já em casa, no Recanto das Emas, de banho tomado e protegida do assédio capitalista e imensurável dos afoitos clientes da barraca de número 22, Naiara, à la cuco, de hora em hora, comparecia à janela, renitente a novas perspectivas capazes de reacender um espírito de luta. Partidária da solidariedade nas visitas aos vizinhos algo desassistidos, ela continha o sorriso até sardônico, ao entoar, mentalmente, trecho da genialidade do amirado Renato Russo que "sempre dizia que o seu ministro ia ajudar".

A felicidade até que era constante no cotidiano da vendedora de artesanato que sabia batalhar, mas sofria com o desencanto de não ver tantos esforços pessoais recompensados. Mas como brasileira — que teimava em não desistir —, Naiara trazia para si a responsabilidade nunca vista em governos e desgovernos. Na base da cooperação de quem vive a coletividade, criava para si uma rede de presença: era presente desde a entrega de marmitas (no auge da pandemia) até o recolhimento de retalhos de tecidos transformados em cobertores para terceiros.

Foi na expectativa de abrir caminhos para a recuperação da estátua da Prainha, emperrada nas burocracias dos papéis, que a impulsiva Naiara acendeu um incenso gabaritado para celebrar a presença de Ogum, o protetor dos ferreiros e artesãos. Ao descuido governamental com a Praça dos Orixás, o papel de Naiara e de outras adeptas era o de promover a ocupação do local.

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