Uma amiga minha tem entre seus poetas favoritos Fernando Pessoa. Entre os mais lindos poemas dele, está Quando vier a primavera, escrito pelo português, sob o heterônimo Alberto Caeiro. Só mesmo alguém tão desprendido do próprio ego para ser ao mesmo tempo várias personas e cada uma delas ter tão próprias convicções. E, nesta poesia em particular, Caeiro é sábio: "...Podem rezar latim sobre o meu caixão, se quiserem. Se quiserem, podem dançar e cantar à roda dele. Não tenho preferências para quando já não puder ter preferências…".
Desculpem-me a heresia de arrancar um trecho de poesia do contexto e de sua métrica. Desculpem a heresia de falar de Fernando Pessoa e de ego, já que não sou especialista numa coisa nem outra. Nem em literatura, muito menos em psicanálise. Mas a minha amiga acha, e eu assino embaixo, que somos, de verdade, pouquinha coisa diante do tamanho do universo, da vida, do amor, da amizade. E neste poema Pessoa fala de como as coisas continuarão existindo, quando não estivermos mais aqui. Em certa altura, diz "sinto uma alegria enorme ao pensar que a minha morte não tem importância nenhuma".
Fernando Pessoa era um ser diverso, tanto é que foi vários. Por que não podemos ser também vários sendo um? Num momento em que tudo cheira a radicalismo, digo com propriedade: a razão está mais próxima de quem tem em si a capacidade de perceber que não é verdadeiramente importante sozinho, que sua opinião não é necessariamente a verdade, que suas certezas — e nem mesmo a sua fé — são inabaláveis.
Vejo circular em e-mails, WhatsApp e redes sociais, listas e mais listas de sites e perfis que devemos acompanhar para sustentarmos melhor as teses que defenderemos na próxima rodada de conversa no trabalho, em família ou no barzinho. Ainda que nunca tenha se discutido tanto sobre política, nunca as pessoas foram tão cegas aos argumentos do outro lado. São poucos os que devoram leituras para desafiar as próprias certezas. As pessoas estão simplesmente buscando nas opiniões alheias argumentos que lhes digam: "viu como você está certo?". É o que tem acontecido e é o retrato de um país que pode até parecer mais politizado, mas no fundo segue à beira de um abismo, o da intolerância.
Assim como nas últimas eleições gerais, já começamos a ver amizades desfeitas, briguinhas em família e discussões acaloradas, por conta de política. Isso não é discussão ou debate produtivo. Esta é a face mais vil dessa polarização idiota. No fim dela, perderá aquele que não souber sequer ouvir. Retomando Fernando Pessoa, a realidade existe apesar de nós. Podemos mudá-la, é claro. Às vezes, no entanto, é mais fácil operar milagres em silêncio do que com discursos inflamados. Os debates são essenciais numa sociedade, mas a surdez seletiva que nega o contraditório nada tem de revolucionária.
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