Paixão fulminante

Severino Francisco
postado em 08/01/2022 00:01

Estava folheando um livro de cartas de Graciliano Ramos para espairecer porque, algumas vezes, bate um cansaço da pandemia, da dor das mortes e dos idiotas em meio a uma situação trágica. Nos tempos de adolescente, trabalhava durante o dia para pagar a faculdade. Estudava à noite e, de madrugada, lia os livros de Graciliano, com sua linguagem seca, contundente e ríspida.

Sempre admirei a franqueza bruta de Graciliano como um sinal de integridade, que, algumas vezes, ganha um sentido alucinatório. Certa vez, o repórter e escritor Joel Silveira apresentou um conto de sua lavra, que julgava bom, para avaliação.

Graça pegou o texto, acendeu um cigarro, começou a ler, espremeu a cabeça e riscou trechos com um lápis vermelho. Ao fim da leitura, rasgou o papel em pedacinhos, jogou na lata de lixo e continuou a conversa como se nada tivesse acontecido. Anos mais tarde, quando tinha se tornado amigo, Joel perguntou se o conto era tão ruim para justificar aquela atitude abrupta, e Graciliano respondeu seco: "Horroroso, cheio de gerúndios insuportáveis".

Quando saiu de uma temporada na prisão, trancafiado pela ditadura de Getúlio Vargas, Graciliano viveu um momento de extrema penúria, cheio de dívidas e com dificuldade para garantir a sobrevivência da família. Os amigos tentaram cavar algum emprego no serviço público: "Parece que vai dar certo o emprego", avisou um dos camaradas. Ao que Graciliano replicou: "É disso que eu tenho medo".

Por isso, sempre fiquei curioso para saber como era a relação de Graciliano com o amor. Eu acho muito misteriosa a maneira como as pessoas se ligam pelos laços do afeto. O grande amor de Graciliano foi Heloísa Medeiros. Ele havia sido eleito prefeito de Palmeiras dos Índios em 7 de outubro de 1927. Em dezembro, conheceu Heloísa. Foi uma paixão e, mais do que isso, um amor fulminante.

Menos de dois meses depois estavam casados, quando ela tinha 18 anos, e ele, 35. As cartas registram os lances da paixão com toda a ranhetice de Graciliano: "Heloísa: chegaram-me as duas linhas e meia que me escrevestes. Tanta gravidade, tanta medida, só vejo em documentos oficiais. Até sinto o desejo de começar esta carta assim: '"Exma. Sra.: tenho a hora de comunicar a v. exa., etc".

Mas as relações protocolares se desfazem no decorrer da troca de missivas e o tema da loucura amorosa se insinua na conversa: "Sou um animal muito complicado, meu anjo. Porque vieste para mim?Foi a loucura que te trouxe". A praxe foi quebrada pelo fato de Graciliano se embriagar para ter coragem de fazer a declaração de amor a Heloísa, que logo descobriu o estratagema e indignou-se.

Então, ele resolveu confessar todos os pecados da maneira mais severa, mais graciliânica: "Aí estão os pecados: o primeiro, um dos piores, é encontrar-me sempre em lamentável estado de embriaguez. Sou leviano, inconstante, irascível e preguiçoso. Também creio que minto. Examinando o decálogo, vejo com desgosto que das leis do velho Moisés apenas tenho respeitado uma ou duas. Nunca matei nem caluniei. Furtar, propriamente, não furto; mas todos os meus livros do tempo de colegial foram comprados com dinheiro surrupiado a meu pai".

Todavia, o pecado que mais agastava Graciliano era o de ser pobre, paupérrimo: "Receio fazer-te infeliz. Entretanto, se quiseres ser infeliz comigo, procuraremos transformar a infelicidade em felicidade". Graciliano e Heloísa se casaram e permaneceram juntos até a morte do nosso escritor, em 1953. Foi uma vida difícil, marcada pela prisão de Graciliano durante uma ditadura e pela penúria, mas com a criação de uma obra poderosa e com um amor, que resistiu a provas duríssimas. Sem Heloísa, talvez Graciliano não fosse Graciliano.

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