A ascensão dos idiotas

por Severino Francisco
postado em 11/01/2022 00:01

Nelson Rodrigues conta que, certo fim de tarde, chegava em casa, quando foi abordado por uma estagiária, que lhe perguntou: "Nelson, qual é o grande acontecimento do século 20?" O nosso profeta do óbvio não teve dúvidas e fulminou: "A ascensão dos idiotas". A estagiária dobrou-se de rir e emendou: "Nelson, você é muito engraçado. Mas, agora, a sério, diga qual o grande acontecimento do século 20?"

Sem esboçar nenhum sorriso, Nelson respondeu novamente, em tom grave: "A ascensão dos idiotas". Argumentou que nunca havia falado tão sério: "Antigamente, os idiotas raspavam na parede com a consciência de sua inépcia. Mas, hoje, se um cretino fundamental sobe em uma lata de querosene Jacaré, será seguido por milhares de outros cretinos fundamentais".

O nosso profeta do óbvio não conhecia ainda o poder propagador da internet, em que a opinião de um Prêmio Nobel e de um ignorante têm a mesma credibilidade. Na pandemia, a disseminação de asnices atingiu o ápice, com a anticiência, a antivacina, a antieducação, a anticultura e o antijornalismo.

Ao assistir o espetáculo da estupidez impávida e triunfante, lembrei de um antigo poema de Brecht sobre o tema, que foi atualizado pelos tempos em que vivemos. Ouçamos a voz do poeta: "Sente-se./Está sentado?/Encoste-se tranquilamente na cadeira./Deve sentir-se bem instalado e descontraído./Pode fumar./É importante que me escute com muita atenção./Ouve-me bem?/Tenho algo a dizer-lhe que vai interessá-lo./Você é um idiota."

Brecht fala com a fluência de quem conversa na mesa de um bar com um suposto interlocutor, que Nelson Rodrigues chamaria de cretino fundamental: "Está realmente a escutar-me?/Não há pois dúvida alguma de que me ouve com clareza e distinção?/Então Repito: você é um idiota. Um idiota./I como Isabel;/D como Dinis;/outro I como Irene;/O como Orlando;/T como Teodoro;/A como Ana./Idiota."

Nos dias atuais, vemos os idiotas assumirem o primeiro plano da cena política e comandarem as massas. O interessante no poema de Brecht é que ele utiliza a estrutura dramática do diálogo de uma maneira muito engenhosa e se antecipa aos argumentos do interlocutor: "Aliás não sou o único a dizê-lo./A senhora sua mãe já o diz há muito tempo./Você é um idiota./Pergunte pois aos seus parentes./Se você não é um idiota.../claro, a você não lho dirão, porque você se tornaria vingativo como todos os idiotas./Mas os que o rodeiam já há muitos dias e anos sabem que você é um idiota./É típico que você o negue/Isso mesmo: é típico que o idiota negue que o é. "

Na sequência, Brecht toca em um ponto também contemporâneo, o espírito de rebanho que rege os ignorantes e lhes confere a segurança da manada, movida e comandada de maneira cega: "Ah sim, acha você que tem exatamente as mesmas ideias do seu parceiro./Mas também ele é um idiota./Faça favor, não se console a dizer que há outros idiotas: Você é um idiota".

Oh, como é difícil convencer um idiota de que é um idiota, ensina Brecht. Mas, sob sombra do nazismo nascente, ele antecipa a percepção crítica sobre era da internet, na qual a tolice se transforma em verdade com uma velocidade estonteante: "Você é um idiota. De resto, não é grave./É assim que você consegue chegar aos 80 anos./Em matéria de negócios é mesmo uma vantagem/E então na política!/Não há dinheiro que o pague. Na qualidade de idiota você não precisa mais se preocupar com nada./E você é um idiota/Formidável, não acha?"

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