A aventura da testagem (2)

Correio Braziliense
postado em 29/01/2022 00:01
 (crédito: FaiaraAssis/Divulgacao)
(crédito: FaiaraAssis/Divulgacao)

A situação da esposa, com o bebê no colo, comovia alguns da fila, menos o médico, que após atender o paciente 50 decidiu por encerrar as atividades do turno. O rapaz foi até ao médico explicar que havia chegado cedo e que estava com uma criança, na esperança de ser atendido ainda pela manhã, mas ouviu do jovem doutor que "se fosse abrir uma exceção para eles, teria de abrir para todo mundo".

Por fim, a maioria da xepa decidiu esperar a troca de turno e ser atendida às 14h, o que significava aguardar três horas a mais, no mínimo. Tempo suficiente para surgir a turma da marmita e ideias de revezamento para saídas da fila. O motivo era simples: todos precisavam comer, mas não queriam abdicar do lugar na fila. É algo surreal o poder de adaptação do ser humano à merda. Nos organizamos para organizar o caos e nos contentamos em ter um lugar garantido nele. Assim, além da camaradagem, bom humor ácido e revolta de alguns, se resume a turma da xepa que chegou de manhã e ficou até de tarde, por mais de sete horas na fila.

Antes de distribuírem as fichas vespertinas, um pequeno tumulto se formou. Quem estava nos últimos lugares da fila reclamava da demora em receber os pequenos e absurdos pedaços de papéis, fonte de alegria para muitos. Batiam boca com as paredes do posto de saúde ou com funcionários que nada tinham a ver com as falhas no sistema. Bradavam que "pagavam os salários dos servidores, para eles não trabalharem e sumirem". Falavam que eles deveriam ter distribuído as fichas antes, para que o pessoal da fila pudesse sair para almoçar antes do atendimento.

A confusão era acompanhada por barulhos de tosse e do choro da criança, filha do rapaz debochado e comunicativo. Ele dizia que ela chorava porque tinha tomado a vacina naquele dia. Eu acho que podia ser de fome; ao telefone, a mãe da criança pediu, algumas horas antes, para a avó trazer uma mamadeira para criança. E todo aquele calor, o médico falando em não abrir exceção para eles. Aquilo foi virando um caos em meu estômago e mente. Talvez tive um pouco de febre também: vi uma senhora de muletas, corcunda e com um turbante, e achei que fosse uma tartaruga gigante.

As reclamações seguiram por algum tempo até começarem a chamar os pacientes da tarde. Antes, a responsável pelo posto tentava se explicar com os raivosos e anunciou, em primeira mão, que acabaria com o sistema de fichas no dia seguinte. Eu, que nunca havia pego a ficha número 1, que nunca havia sido o primeiro em nada, estava ansioso e contente por chegar a minha vez. Estava fraco e delirante para reclamar sobre qualquer coisa; nem mesmo sobre a falta de água para beber no local. O único bebedouro da UBS estava quebrado. Quem podia, ia até um quiosque comprar uma garrafa de água a R$ 3.

E eis que mais de sete horas depois, na véspera do meu aniversário, além de uma insolação, ganhei de presente por ser um bom cidadão (que paga impostos e salários de servidores — dãã) um diagnóstico negativo de covid. Mas a alegria durou pouco, afinal não me sentia bem. Fui diagnosticado com influenza. Pelo menos, pude comemorar (sem covid) mais um ano de vida em meio à pandemia. Grande dia.

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