Enquanto o mundo explode, pensei, vou ver a exposição retrospectiva de 30 anos de trabalho de Usha Velasco, fotógrafa mineira/brasiliense premiada, no Espaço Cultural Renato Russo da 508 Sul. Mas não consegui me alienar; logo na entrada, bati de cara com uma série de imagens de um Brasil doente, porém transfigurado pela arte. É da safra mais recente de Usha, produzida durante o período dramático de isolamento da pandemia.
O Brasil doente é o Brasil contaminado pelos vírus da pandemia, da desinformação, da irresponsabilidade e da servidão voluntária. Na série de Usha, a bandeira do Brasil passa por uma operação lírica de recriação, ressignificação, reumanização e rebrasileiramento. É uma atitude indignada, mas jamais panfletária; nasce da experiência duramente vivenciada.
Usha compõe poemas-pôsteres onde inscreve inconfidências mineiras: "É triste viver em um país onde a vida das pessoas a quem amamos não vale nada". Não são as bandeiras oficiais das patriotadas; são bandeiras pobres, puídas, rachadas, vividas e sofridas, com as marcas do Brasil real.
Em foto de outra série sobre a pandemia, ela ocupa a imagem com o próprio corpo ao lado de uma foto dos tempos em que era bebê: "Eu bebê e aqui tentando tocar o tempo". Usha não é uma fotógrafa convencional; ela é uma artista, que utiliza, livremente, a linguagem da fotografia para fazer poesia. Com imaginação, mixa foto, pintura, poema-pôster, colagem, cinema, videoarte e literatura.
Não é mineira do interior por acaso; ela cultiva a mineiridade como busca do essencial, da simplicidade e do despojamento. Humildade não é humilhação, nos sopra Clarice Lispector. Usha nomeia uma série de fotos tiradas na cidade em que seu pai nasceu de "Minas não há mais", ecoando Carlos Drummond.
Mas escava Minas no chão, nas margens e nos desvãos da capital modernista. A Brasília de Usha nada tem a ver com a da arquitetura monumental ou das imagens que aparecem nos telejornais. A memória do interior de Minas se enreda com o presente brasiliense e com a imaginação.
Brasília tem uma força gravitacional que nos impele a olhar para o alto. Usha não mira os monumentos, mas, sim, os personagens anônimos, as cenas triviais, o lixo industrial e os resíduos ínfimos. O olhar dela irradia um profundo humanismo do artista enquanto coisa. Dos objetos sucateados é possível depreender o drama das pessoas que estão atrás deles: "Ainda estamos aqui", avisa uma frase inscrita em cima de uma bandeira construída com lata estropiada, no lugar do lema Ordem e Progresso.
Ela fotografa o silêncio e capta os movimentos de um menino de rua refratado por luzes e sombras como se fosse um filme do neorealismo italiano. Um varal lírico ostenta a foto de uma árvore com os dizeres: avó é raiz, mãe é nuvem. As bolinhas das pinturas de Athos Bulcão se fundem à carcaça de um fusquinha e os desenhos dos azulejos ficam suspensos no ar em frente a uma parede.
São imagens que contam histórias, mas sem entregar tudo, atiçando a imaginação para o que está fora do quadro. A arte de Usha tem um apuro extremo, embora abra espaço para o acaso, o erro, o onírico e o inconsciente. Ela fotografa com uma câmera na mão e a poesia na cabeça. Saí da exposição com os olhos inebriados pela beleza de um cinema transcendental das coisas simples.
PS: A exposição de Usha fica em cartaz até 13 de fevereiro no Espaço Cultural Renato Russo da 508 Sul.
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