Adeus à elegância de Walcy

Morreu, ontem, um dos fundadores do Clube do Choro. Amigos relembram o entusiasmo e a classe de Walcy Barbosa nas rodas musicais da cidade

Irlam Rocha Lima
postado em 17/02/2022 00:01
 (crédito: Paulo de Araújo/CB/D.A Press)
(crédito: Paulo de Araújo/CB/D.A Press)

A música de Brasília está de luto. Morreu ontem, às 6h, no Hospital da Asa Norte (Hran), aos 93 anos, o clarinetista Walcy Barbosa Tavares, um dos fundadores do Clube do Choro. Foi ele quem, por determinação do então governador Elmo Serejo Farias, em outubro de 1977, fez a escolha do prédio anexo do Centro de Convenções, no Eixo Monumental, para instalar a primeira sede da instituição.

Posteriormente, Walcy teve atuação decisiva para que o clube viesse a funcionar, mesmo de forma precária, ao tomar emprestado do Clube dos Previdencários — do qual era diretor social — mesas e cadeiras. Ele e outros músicos, entre os quais Antônio Lício, Bide da Flauta, Pernambuco do Pandeiro, Valério Xavier, Francisco de Assis, Alencar 7 Cordas e Tio João do Trombone foram responsáveis pela realização dos primeiros encontros dos chorões na histórica sede.

Encontros musicais

"Nós, que participávamos das rodas de choro, no apartamento da flautista Odette Ernest Dias, na 311 Sul, passamos a nos reunir também no Clube do Choro, de forma insubordinada, sem a autorização do Avena de Castro, que havia sido eleito presidente da entidade. Esses encontros duraram três anos e contavam sempre com a participação ativa e entusiasmada do Walcy", lembra Lício.

Walcy estava à frente das concorridas rodas de choro informais, regadas a feijoada e cerveja, que Pernambuco do Pandeiro passou a promover nas tardes de sábado, na área externa do clube,que reunia a velha guarda e jovens chorões. Um deles, Antônio Lício, foi eleito pelos associados, para a presidência, após a morte de Avena de Castro. "O Walcy, sempre atuante, era um elo entre os dois grupos". recorda-se Lício.

Em 1983, Lício mudou-se para Maceió e foi substituído pelo vice-presidente Francisco se Assis, que cumpriu mandato até 1986. Depois disso, as reuniões deixaram de ocorrer e a sede passou por um processo de deterioração, devido ao vazamento de um esgoto do Centro de Convenções. "Certo dia, me juntei ao Walcy e empunhando vassoura e rodo fizemos uma faxina. O Walcy já era um senhor, mas encarou tudo com naturalidade", conta Henrique Santos Filho, o Reco do Bandolim, presidente do Clube do Choro. "Com a profissionalização do funcionamento do clube, o Walcy, que era um romântico e preferia informalidade, aos poucos foi se afastando dos projetos que passamos a realizar, mas quando nos encontrávamos, me tratava com cordialidade", complementa.

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  • O dono do salão: Walcyr Barbosa Tavares e a cantora Renata Jambeiro no restaurante Feitiço Mineiro
    O dono do salão: Walcyr Barbosa Tavares e a cantora Renata Jambeiro no restaurante Feitiço Mineiro Foto: Paulo de Araújo/CB/D.A Press
  •  "Com a profissionalização do funcionamento do clube, o Walcy, que era um romântico e preferia informalidade, aos poucos foi se afastando dos projetos que passamos realizar, mas quando nos encontrávamos, me tratava com cordialidade"
Reco do Bandolim
    "Com a profissionalização do funcionamento do clube, o Walcy, que era um romântico e preferia informalidade, aos poucos foi se afastando dos projetos que passamos realizar, mas quando nos encontrávamos, me tratava com cordialidade" Reco do Bandolim Foto: Minervino Júnior/ENCDF/D.A Press
  • A Velha Guarda do Clube do Choro: Tio Nilo, Bide da Flauta, Pernambuco 
do Pandeiro, Eli do Cavaco e Alencar 7 Cordas
    A Velha Guarda do Clube do Choro: Tio Nilo, Bide da Flauta, Pernambuco do Pandeiro, Eli do Cavaco e Alencar 7 Cordas Foto: Eladir Faria/Arquivo Pessoal

Fala mansa, coração guerreiro

Era o embaixador do chorinho em Brasília. O título foi concedido pelo então governador Elmo Serejo Farias, impressionado com a insistência do seu assessor de gabinete, que pleiteava um lugar para abrigar o recém-criado Clube do Choro. Pouca gente sabia, mas batia um coração guerreiro sob o semblante polido, plácido e educado de Walcy Barbosa Tavares. O coração parou de bater ontem, mas a obra permanece.

Walcy representava bambas que tentavam tirar o mais tradicional gênero musical brasileiro do ostracismo, naqueles anos 1970 e que se reuniam quase que clandestinamente nas tardes de sábado. Os chorões concordaram com o governador e o elegeram vice-presidente do clube; com a morte de Avena de Castro, seis meses depois, assumiu a presidência.

Walcy Tavares passou 59 dos seus 93 anos de idade em Brasília. Chegou para trabalhar na presidência da República, ocupou cargos importantes, mas nenhum o orgulhava mais do que a presidência do Clube do Choro.

Fala mansa, em tom baixo, gestos comedidos, Walcy se divertiu com vários instrumentos, especialmente de percussão. Até pouco antes da pandemia se destacava com um afoxé cheio de marra — e de fabricação própria — na roda musical do Grao, no Lago Norte. Ultimamente, aliás, vinha se destacando mais pelos pés, oferecendo pés ágeis e seguros às mocinhas que faziam fila por uma dança com o pé-de-valsa.

Clarineta

Mas Walcy também tocou sopros. E contava sentido o furto de uma clarineta em si bemol que ele havia contrabandeado — naquele tempo era proibido importar instrumentos musicais  — surrupiada depois de uma roda numa chácara próxima a Brasília. Por muito tempo teve que voltar à velha clarineta em dó, abdicando do recurso das 21 chaves.

Meses depois soube que o maestro Manoel de Carvalho, professor da Escola de Música e fundador da Brasília Popular Orquestra, estava tocando uma clarineta em si bemol. Com o número de série nas mãos, ligou para o maestro, seu amigo. Era ela. A clarineta havia sido esquecida no táxi do pai de um aluno do maestro.

Walcy recuperou a sua querida clarineta em si bemol, que ultimamente estava meio abandonada num quarto do apartamento em que ele morava na Asa Norte, ao lado de uma flauta Birollo que pertenceu a Pixinguinha, do último cavaquinho de Waldir Azevedo, um sax de Abel Ferreira, pandeiros, tarraxas e platinelas de Pernambuco do Pandeiro. Chegou a hora dele se reencontrar com os antigos donos dos instrumentos.

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