Por que devemos ter esperança

Ana Dubeux
postado em 21/03/2022 00:00 / atualizado em 21/03/2022 00:00

Por que devemos ter esperança

Referência nos estudos de antropologia no Brasil, Lia Zanotta recebeu o título de professora emérita da UnB no ano passado. Crítica contumaz dos ataques à ciência e à diversidade, é uma voz esperançosa pela transformação do Brasil

 

Sutiã

Professora da Universidade de Brasília (UnB) desde 1977, Lia Zanotta Machado participou ativamente do processo de redemocratização da universidade, foi uma das fundadoras da associação de docentes e a primeira mulher a se candidatar à Reitoria. Apenas mais de três décadas depois, vimos uma mulher ocupar o posto.

Portanto, Lia sabe que a luta é longa e permanente, sobretudo pelos direitos das mulheres. Ainda assim, nesta entrevista ao Correio Braziliense, nos ensina que vale o esforço, que estamos caminhando e que devemos, sim, ter esperança.

“Sem esperança, não teríamos hoje a continuidade e florescência de movimentações sociais pela renovação e ampliação daqueles mesmos direitos presentes na luta pela redemocratização, hoje apoiadas por inúmeras/os jovens e múltiplas gerações, alcançando redes sociais virtuais e inovações criativas”, diz.

Professora Emérita da UnB, Titular de Antropologia e Pesquisadora do Núcleo de Estudos e Pesquisas sobre a Mulher (NEPeM), Lia acredita que “a força da articulação entre as múltiplas movimentações feministas, antirracistas, pela diversidade sexual e pelos direitos ambientais estão cada vez mais visíveis no espaço político, apesar do atual governo federal se manifestar continuamente de forma misógina, homofóbica, racista, anti-indígena e anti-ambiental”.

Lia reflete ainda sobre o patriarcado, a importância da política de cotas também para ressignificar o papel das mulheres na sociedade e sobre a presença feminina na política.

“Tenho certeza que as quotas raciais inscritas nas universidades públicas estão sendo contribuições primordiais para a democratização racial e de gênero dos profissionais de direito e de todas as profissões de ensino superior, e, assim, do aumento da circulação da produção intelectual feminista, antirracista e pelos saberes da diversidade sexual”, observa.

Na sua avaliação, o que ainda emperra uma maior participação das mulheres na política é a cumplicidade entre homens, nos partidos políticos e nas composições de equipe quando ascendem ao poder. Basta contar quantas mulheres fazem ou fizeram parte do alto escalão ministerial dos governos masculinos.

Ela explica: “A cumplicidade masculina dificulta a percepção para eleitores e eleitoras que mulheres, tais como os homens, podem tanto ter e representar as qualidades que se quer para um cargo como não tê-las. Em geral, as mulheres apresentam mais qualidade, porque não foram forjadas, em sua maioria, na relação da troca cúmplice de ‘favores’ tão comum ao mundo político”.

A professora fala ainda sobre justiça e a Lei Maria da Penha, além de discorrer sobre como um novo olhar sobre a atualidade ainda se confronta com um conservadorismo extremo: “As vozes conservadoras são vozes pseudomoralistas e anacrônicas que entendem a noção da homossexualidade como crime e pecado e a noção da ‘mulher independente’ como irresponsável e causadora do crime e do pecado da desestruturação da ‘família tradicional’, que deveria ser somente heterossexual e onde a mulher somente caberia o ‘papel adjutório’".

A senhora foi a primeira mulher a se candidatar à reitoria da UnB, em 1985, na época da redemocratização. Só agora, quase 36 anos depois, uma reitora comanda a universidade. Quanto tempo vamos esperar para ocupar os espaços de poder em igualdade de condições com os homens?
Foram duas as razões pelas quais me candidatei. Uma por ter sido membro ativa da movimentação docente. Integrei a Comissão de negociação da greve de 1982 pela incorporação dos professores colaboradores no quadro da UnB e a outra, por entender que era hora da presença feminina entre os candidatos a reitor. Dos 17 candidatos que se inscreveram, 16 eram homens. As eleições em 1986 foram conquistas da movimentação docente da UnB que havia criado em 1978 a Associação de Docentes da UnB (ADUnB). Queríamos que a lista sêxtupla fosse composta apenas por participantes do movimento docente. Conseguimos no segundo turno que os três primeiros lugares e o quinto e o sexto daí proviessem. Tive o orgulho de ter sido votada em terceiro lugar, seguindo a Cristovam Buarque e João Claudio Todorov. A partir daí mulheres se candidataram nas eleições seguintes ou como reitora ou como vice-reitora, mas somente hoje temos uma reitora mulher eleita.


O que, de fato, emperra esse processo de ocupação dos espaços pelas mulheres na política, nas empresas e nas instituições como um todo?
Muito se disse e se diz sobre a razão estar nas próprias mulheres que teriam menor disposição para entrarem na política. Mas essa é uma razão menor e cada vez menor. Mais mulheres estão se candidatando cada vez mais. Não é que elas não se disponham a enfrentar os desafios de uma vida política. É que os desafios para elas são maiores. O que emperra o processo de entrada de mais mulheres na política é que existe a cumplicidade entre homens. Nos partidos políticos entendem, como se fosse “natural” que o apoio entre si, entre homens, fortalece não só o outro mas a si mesmo. A figura masculina é vista como forte e decisiva. Nas eleições, a cumplicidade masculina também se faz presente, dificultando a percepção para eleitores e eleitoras que mulheres tais como os homens podem tanto ter e representar as qualidades que se quer para um cargo como não tê-las. Em geral, as mulheres apresentam mais qualidade, porque não foram forjadas, em sua maioria, na relação da troca cúmplice de “favores” tão comum ao mundo político. Quando homens ascendem ao poder executivo, a maior parte convida para integrar seus quadros adjuntos preferencialmente outros homens. Exemplo claro é do atual presidente que escolheu apenas duas ministras e, hoje, tem apenas três nas 23 pastas ministeriais. No atual governo federal, nos 88 postos do primeiro escalão – ministros de Estado, secretários-executivos e assessores especiais – somente 11 (ou 12%) são ocupados por mulheres. O ex-presidente Temer primou por não escolher nenhuma mulher. Teve 23 ministros homens. No primeiro mandato de Lula, foram cinco as ministras. Quatro no segundo. Foi uma mulher, a ex presidente Dilma, que chamou nove mulheres como ministras entre as 37 pastas ministeriais. Infelizmente nem todas as mulheres que chegam ao poder defendem os direitos das mulheres, tal como no atual governo foram minimizadas todas as políticas de defesa dos direitos das mulheres e dos direitos humanos , apesar de estar a sua frente uma mulher. Contudo, a presença das mulheres em cargos políticos de alta visibilidade e poder é importante pois rompe a “naturalidade” do dito popular que “política é lugar de homem.


Umas das vozes mais eloquentes contra os ataques à diversidade e à ciência, a senhora ainda tem esperança na transformação da sociedade?
Sem esperança, não teríamos tido o fim da ditadura no Brasil, não teríamos tido a movimentação pelos direitos das mulheres, pela igualdade racial, pelos direitos indígenas, pelos direitos das populações tradicionais, pelos direitos ambientais, tal como tivemos e que foram os grandes responsáveis por termos tido a aprovação pela Assembléia Constituinte da Constituição de 1988, a chamada Constituição Cidadã.

Quais?

Sem esperança, não teríamos hoje a continuidade e florescência de movimentações sociais pela renovação e ampliação daqueles mesmo direitos presentes na luta pela redemocratização, hoje apoiadas por inúmeras/os jovens e múltiplas gerações, alcançando redes sociais virtuais e inovações criativas. A força da articulação entre as múltiplas movimentações feministas, antirracistas, pela diversidade sexual e pelos direitos ambientais estão cada vez mais visíveis no espaço político, apesar do atual governo federal se manifestar continuamente de forma misógina, homofóbica, racista, anti-indígena e anti-ambiental. E apesar de que, infelizmente, do mesmo modo, parece desacreditar os conhecimentos científicos, ao falar da pandemia e do aquecimento global. São sabidas e conhecidas as reduções neste governo federal, das políticas ambientais, das políticas pelos direitos humanos e pelo apoio a ciência, inovação tecnológica e educação. Mas sim tenho esperança. E a esperança é a única forma de superarmos as dificuldades.

Até que ponto o patriarcado continua contribuindo para a opressão de gênero e, daí, para a violência contra as mulheres? Existe uma forma de “patriarcado moderno”?

O patriarcado e o poder de gênero não são somente memória social e cultural. Foram impostos por códigos civis e penais inscritos e pelos poderes de administrar e aplicar leis. Daí se dizer que temos um patriarcado sexista estrutural que se intersecciona com um racismo estrutural, que organiza relações e expectativas sociais. O poder de gênero se realiza pela força simbólica de sua anterior inscrição e aplicação em leis, ainda que revogadas muitas delas. O conceito de patriarcado que serve para pensar o mundo moderno industrial e urbano é o conceito de patriarcado contemporâneo tal como posto pela socióloga Carole Pateman; o contrato social das nações modernas foi fundado em uma contradição : leis que estabelecem igualdade de direitos entre indivíduos e desigualdade de direitos entre sexos/gêneros. Na linguagem da historiadora francesa Michelle Perrot, trata-se da contradição construída ao longo do século XIX: cresce a noção de individualismo e direitos iguais e, contraditoriamente, embora as mulheres tais como os homens sejam destinadas ao mercado de trabalho, (ainda que com mais baixos salários), somente elas estão destinadas ao espaço doméstico e a atividades de cuidados dos filhos. Com isso, as atividades e posições públicas são postas simbolicamente como não adequadas às mulheres. As profissões de ensino superior mais prestigiadas se destinavam exclusivamente aos homens: médicos, advogados, juízes. Mulheres eram interditadas. Apesar de as mulheres terem sido destinadas ao espaço doméstico, a chefia doméstica por sua vez foi atribuída aos homens. Em uma palavra, o patriarcado contemporâneo se instala através do corpo de seus códigos e leis civis e penais que instituiu a desigualdade de gênero por todas as nações modernas ao longo dos séculos XIX e XX.


Na América Latina, nos séculos 20 e 21, os movimentos feministas foram importantes na luta para mudar legislações sobre honra e desigualdade inscritos nos códigos penais e civis. Hoje, podemos dizer que a produção intelectual feminina ainda tem baixa circulação no meio jurídico acadêmico em razão da hegemonia masculina e branca da academia?

No começo dos anos dois mil, tive um pós-graduando de direito que se inscreveu numa disciplina de Antropologia do gênero que eu ministrava. Ao final do curso, me chamou e pediu um tempo maior para poder fazer o trabalho que se dispunha a fazer: o entendimento social e jurídico do crime de estupro. Queria mais tempo pois para fazê-lo teria que “desaprender” (em suas palavras) o que havia aprendido com seus professores na área de direito. Em especial, queria tempo para poder fazer a crítica do que constava nos Manuais dos Códigos Penais sobre estupro, feitos e oferecidos como base primária de ensino para os iniciantes ao direito. Hoje, a área acadêmica de direito na UnB inclui vozes e saberes feministas e antirracistas, ao lado da manutenção das vozes conservadoras. Pensando a área acadêmica do direito como um todo, considero válida minha percepção sobre o que ocorreu e ocorre no Brasil: mais vozes e saberes do direito incorporam as vozes e saberes feministas e antirracistas em todo o Brasil, mas, por outro lado, continuam presentes as vozes conservadoras. Tenho certeza que as quotas raciais inscritas nas universidades públicas estão sendo contribuições primordiais para a democratização racial e de gênero dos profissionais de direito e de todas as profissões de ensino superior, e , assim, do aumento da circulação da produção intelectual feminista, antirracista e pelos saberes da diversidade sexual.

Como a senhora vê o sistema de justiça? Ele cumpre o papel “de uma voz que fale ao agressor em nome do poder público”?

Temos assistido à repetição de uma situação trágica, que se tornou clássica: a mulher sofre uma agressão, denuncia ao poder público, mas não recebe proteção e é assassinada pelo ex-companheiro. Mesmo com o avanço nos direitos da mulher, a violência dos homens contra as mulheres persiste...

O que não funciona no sistema de Justiça?

A lei da Maria da Penha e a lei do feminicídio foram um grande passo. Mudaram a opinião publica que considerava a violência contra a mulher um crime de “bagatela” ou sequer crime, apenas uma briga de marido e mulher a ser resolvida na área privada e não pela justiça. Nas Ordenações Filipinas que regeram o Brasil colônia, o homem podia matar a mulher se desconfiasse que o traia, assim como seu amante, caso fosse de status social inferior. Essa norma , ainda que abolida, parece estar impregnada no entendimento de homens agressores. No sistema jurídico foi transmutada na absolvição de homens que matavam suas mulheres alegando traição. Foi o que fez explodir o movimento feminista no Brasil dos fins dos anos setenta. As normas mudaram. Mas não podemos nos esquecer que nos Códigos penais e civis que instituíram a colônia, o Império e a República, sempre coube aos homens a chefia masculina . Somente a constituição de 1989 e o novo código civil de 2012 mudaram o poder privado masculino sobre esposa e filhos e entenderam a chefia familiar como conjunta. Até 1962 com o estatuto da Mulher casada, cabia a mulher obedecer ao marido em tudo o que fosse justo e honesto. E era ele quem definia o que era justo e honesto... Por toda essa nossa longa história de extrema desigualdade de poder entre homens e mulheres, e por toda essa longa história jurídica de não se dar importância às violências contra as mulheres, posso dizer que meus estudos sobre a aplicação da Lei Maria da Penha mostram desigualdade de formas de aplicação. Há excelentes Juizados. Mas falta muito a ser feito, implementado e expandido. Cabe ao Estado e ao Sistema Judiciário implementarem a Lei Maria da Penha de tal forma, que afastem as possibilidades de continuidade da violência e previnam os feminicídios. Para isso, recursos não penais devem se articular com os penais e os superarem. E imprescindível que sejam cada vez mais oferecidas as diversas medidas cautelares que obrigam os agressores e protegem as mulheres. Que se realizem os encaminhamentos de agressores e agredidas para redes e grupos de reflexão e apoio social e psicológico. Que juízes e promotores entendam a relevância de sua fala nas audiências e de sua capacidade de escuta das falas das mulheres. Que os operadores de justiça se capacitem no entendimento da estruturalidade do poder desigual de gênero e no entendimento da violência de gênero. Caberá às tramas das relacionalidades no âmbito da sociedade civil e da vida politica, a continuidade resistente do entendimento dos direitos fundamentais da pessoa humana como princípios que não admitem discriminação de sexo, gênero, sexualidade, raca, cor, etnia ou religião.

As redes sociais contribuíram para a articulação dos movimentos feministas, mas também fortaleceram os que disseminam preconceitos e violência...

Nas redes sociais, há o crescimento das vozes pelos direitos das mulheres, da diversidade sexual e da igualdade racial. A essas vozes se contrapõem as vozes dos movimentos conservadores e neoconservadores que têm uma proposta impositiva. A linguagem dos movimentos feministas e direitos humanos não cumpre o papel moralista dos mitos ocidentais que identificavam certas práticas sexuais e reprodutivas, umas como pecado e crime e outras como virtudes legitimas, legais ou sacralizadas. Os direitos humanos reforçam uma orientação ética que coloca como limite o direito do outro e o crime como ofensa ou afronta ao direito do outro, e, assim, e uma ética pluralista que respeita a todos e a cada um/uma, desde que não ofenda o direito do outro/a. Contra as vozes pelos direitos humanos, dado o momento autoritário político que vivemos, crescem as vozes conservadoras e sua insistência de que o que importa não são os direitos e nem a ética do respeito ao outro. As vozes conservadoras são vozes pseudomoralistas e anacrônicas que entendem a noção da homossexualidade como crime e pecado e a noção da “mulher independente” como irresponsável e causadora do crime e do pecado da desestruturação da “família tradicional” que deveria ser somente heterossexual e onde a mulher somente caberia o “papel adjutório”.

 Como educar meninas para enfrentar um mundo sexista e misógino?

— O que diria a uma jovem estudante que sonha em seguir a carreira acadêmica?

— Qual a relevância da educação no combate a violência contra as mulheres? Até que ponto escolas e universidades cumprem esse papel e o que deveria ser feito?

Lia; Dificuldades sociais muitas vezes impõem dificuldades ao papel formativo das famílias. Muitas famílias vivem no limite da sobrevivência. E muitas vivem em contexto de violência interpessoal. Cabe ao Estado e as escolas grande parte da formação da pessoa . À escola não cabe apenas o ensino das habilidades, mas sim e sobretudo da formação da cidadania e da educação sexual , dos direitos humanos e do enfrentamento à violência e discriminação contra as mulheres , discriminação racial e discriminação contra homossexualidade e transexualidade.

 

 

 

— Professora, uma pesquisa sua explica por que os brasilienses gostam de Brasília. Como a senhora definiria esse amor?
— Lia: Brasília é uma cidade inovadora, criativa, clama por mais inovação. Não é apenas a capital brasileira. É uma cidade amorosa. Mas não há como não ver as dificuldades econômicas e sociais do difícil momento econômico e social que vivemos, além da tragicidade da pandemia que nos causou tãograves problemas.

— A senhora é professora emérita da UnB, está na instituição desde 1977. Sua rotina mudou bem na pandemia?

— Lia: Trabalho em home office. Sinto falta dos encontros presenciais.

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