A saga de Cazarré

Severino Francisco
postado em 30/03/2022 00:01

Quando eu era adolescente, tentei, por várias vezes, enfrentar Os sertões, de Euclides da Cunha, mas, confesso que empaquei no primeiro capítulo, intitulado A Terra. Era uma linguagem muito árida, científica e técnica. Mas, certo dia, resolvi pular o primeiro capítulo e a leitura fluiu de maneira intensa, dramática e impactante.

Entrei na pele dos jagunços-beatos, vivenciei as emboscadas, testemunhei a bravura dos sertanejos e a infâmia de um dos maiores crimes da história brasileira. É desnorteante a reviravolta na visão do próprio Euclides da Cunha, que acompanhou a guerra de Canudos, na função de repórter. Nos primeiros capítulos, ele ressoa preconceitos pseudocientíficos sobre a superioridade da raça branca e rebaixa os sertanejos à condição de raça inferior.

Todavia, no decorrer da refrega, Euclides muda inteiramente de opinião. De raça inferior, os sertanejos são alçados ao patamar de "titãs acobreados". O escritor gaúcho-brasiliense Lourenço Cazarré teve uma experiência muito semelhante à minha, de frustração e, em seguida, vencida a resistência inicial, de êxtase com a leitura.

Por isso, ele está muito credenciado a fazer um atalho para facilitar o contato dos jovens com a riqueza literária de Os sertões. É isso que ele tenta fazer em Amor e guerra em Canudos, ficção dirigida especialmente ao público dos adolescentes. E disso Cazarré entende. Ele acumula prêmios e largas tiragens com narrativas escritas especialmente para esse segmento.

Mas, da mesma maneira que ocorre com qualquer obra literária de qualidade, o livro pode ser apreciado por gente de qualquer idade. Na ficção infantojuvenil, ele inventou uma bela garota, inteligente e sensível, chamada de Maria Guilhermina.

Aos 15 anos, ela chega com os pais e o irmão gêmeo a Canudos, onde se encontra com dois rapazes que se apaixonarão por ela: um poeta pernambucano e um militar inglês: "Nas palavras ditas e escritas por esses três jovens, nos seus sonhos, emoções, certezas, dúvidas, aventuras, alegrias e tristezas, o leitor poderá acompanhar o avanço simultâneo do amor e da guerra — os eternos inimigos — no coração selvagem do Brasil", diz Cazarré.

Em junho de 1977, aos 23 anos, quando morava em Florianópolis, usava cabelo black power e uma bolsa a tiracolo quadrada de couro, Cazarré leu pela primeira vez Os sertões. Ele também confessa que pulou o fatídico capítulo primeiro, sobre a terra, teve dificuldade no segundo, mas se apaixonou de vez adentrar ao terceiro, A luta - preliminares.

A pergunta fatal martelou a cabeça de Cazarré de maneira fulminante: como é que ninguém nunca escreveu uma ficção baseada na história desse livro? Ele sentiu o impulso para escrever, mas arrefeceu o ânimo, ao ponderar que seria preciso dedicar alguns anos de estudo até mergulhar na empreitada. Mas se você tem uma ideia e não a realiza, pode ter a certeza de que outro mais rápido no gatilho a pegará no ar.

E foi o que aconteceu: em 1981, Vargas Llosa tirou o pão da boca de Cazarré ao lançar A guerra do fim do mundo, ficção baseada em Canudos. Não foi o único golpe: o escritor húngaro Sándor Márai publicou, recentemente, Veredicto de Canudos.

É agora ou nunca, pensou Cazarré, provocado. Ele sabe falar a língua dos jovens e criou uma ficção para fazer um atalho até a obra original de Euclides da Cunha, que é daqueles livros que mudam a nossa vida. Nunca termina de ser lido, sempre pede a releitura. E torna-se ainda mais atual com a volta de tempos dominados pela estupidez da guerra.

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