Prêmio Marielle Franco

Sublime humanidade

Há 15 anos, a servidora do Hospital Materno Infantil de Brasília (Hmib) Kyola Vale atende populações vulneráveis com empatia e respeito

Ana Maria Pol
postado em 31/03/2022 00:01
 (crédito:  Marcelo Ferreira/CB/D.A Press)
(crédito: Marcelo Ferreira/CB/D.A Press)

Num cenário de recrudescimento das mazelas sociais, a dor do outro pode se tornar insuportável diante das urgências cotidianas. Entretanto, há quem não se permita desviar o olhar das necessidades alheias e, mais do que isso, escolhe a empatia e o exercício de acolhida como profissão e objetivo de vida. É o caso da psiquiatra Kyola Vale, 58 anos, servidora do Hospital Materno Infantil de Brasília (Hmib), que recebeu em meados de março o prêmio Marielle Franco, como servidora ativista pelos direitos humanos, da Câmara Legislativa do Distrito Federal (CLDF).

Há 15 anos, a médica atende, de maneira humanizada, pessoas que se acostumaram com a hostilidade social: mulheres em situação de vulnerabilidade, população LGBTQIA e autistas. Uma escolha profissional pautada em valores que são óbvios para Kyola. "Eu não faço nada demais, mas sim aquilo que é dever e compromisso do servidor público. Ele está ali em função do estado, com o objetivo de cuidar e amparar. Há um número significativo de pessoas que estão nessa empreitada comigo, e que tem uma postura semelhante. Não estou sozinha. Na verdade, eu represento um grande público de servidores que se importam com essas causas", garante a psiquiatra, ainda admirada com a premiação.

Olhando para dentro

Ela conta que o interesse pelos direitos humanos surgiu quando ela teve contato com a medicina tropical — ramo que compreende as doenças infecciosas e parasitárias e que atinge mais áreas de clima tropical, onde a transmissão é facilitada pelas baixas condições sócio-econômicas."Trabalhava com alguns professores, em uma grande área na Bahia, que era endêmica de Leishmaniose. Muito do que está impresso em mim, tem relação com o que vivi nessa época. Me fez conhecer o Brasil de verdade, eu conhecia o exterior, mas não o interior", pontua.

No final do curso de medicina, surgiu o interesse pela psicanálise. "A questão mental começou a me chamar atenção. Fui fazer meu treinamento de saúde mental no Hospital de Base e passei a ter contato com diferentes casos. Após isso, fiquei um bom tempo por conta de cursos de psicanálise e, hoje em dia, voltei meu olhar para os direitos humanos. Agora meus cursos são apenas sobre isso", explica. Apesar do olhar profissional, ela diz que a temática não é um objeto frio de trabalho. "A minha área pede que eu vá mais além, que procure por mais. Foi quando entrei no mundo dos direitos humanos, passei a entender mais dos problemas que via e enfrentava nas salas dos hospitais", diz.

Violência real

Escutar e acolher. Esses são os dois princípios que movem e definem a relação de Kyola com o sistema de saúde do DF. Ela conta que após ingressar na Secretaria de Saúde, passou a ter contato com diferentes casos de pessoas que sofriam violações de direitos. "À medida que eu ia me aproximando da pauta, vi que os números só crescem, em especial no assunto de violência contra a mulher. Isso me chamou a atenção e fui atrás de cursos, de estudo", recorda.

Da violência contra a mulher, a psiquiatra passou a ter contato com casos de LGBTFobia. "No pronto socorro, apareciam pessoas que tinham tentado suicídio, por preconceito, rejeição da família. Outras vezes surgiam pessoas espancadas. Foi quando a pauta me convocou e não consegui mais focar em outra coisa que não fosse ajudar essas pessoas", explica.

Com a experiência da escuta acolhedora, Kyola ampliou sua atuação para além do expediente de trabalho e estudo. "Quem trabalha com essas pautas, não pode ficar preso em consultório. Precisamos nos envolver, participar de movimentos sociais, escutar demandas. Eu sou aquela pessoa que tem um otimismo esperançoso, e vamos tentar fazer diferente. Enquanto outros não fazem, eu faço onde estou, com o apoio de colegas e da minha direção", diz.

Foi a vivência que mudou a maneira como a psiquiatra enfrenta temas difíceis. "No caso do sistema socioeducativo, a impressão de senso comum, muitas vezes, é que os jovens são psicopatas, quando na verdade é gente comum. São histórias distantes de nós, mas que precisamos interagir e nos envolver", diz. "A gente visita uma série de questões, propósitos. Minha vida é igual à de todo mundo, mas não tem espaço para ficar sequestrada em temas dramáticos. Eu sou convidada, o tempo todo, a intervir e aferir esses temas", ressalta.

Apesar da força de espírito, a profissional revela que, certas histórias, são muito impactantes. Para lidar com tantas emoções, ela compartilha algumas reflexões no blog A estética do sofrimento. "Pinto aquarelas e escrevo crônicas porque, apesar de rir muito, o impacto das dores dessas pessoas sobre mim é pesado. Quando atendo uma pessoa jovem estuprada, um homem trans, eu costumo sair devastada. Até porque, a doutora também é humana", diz.

Ainda assim, Kyola garante que deseja continuar nesse papel, como médica. "Quero me manter envolvida em movimentos, pautas diversas para acionar uma rede. Esse é o meu lugar", assegura.

Premiação

O Prêmio Marielle Franco de Direitos Humanos está na terceira edição. O reconhecimento é dedicado à atuação de defensores dos direitos humanos em diversas áreas. A iniciativa, além de prestigiar os selecionados, contribui para que mais pessoas, organizações e servidores se engajem nessa luta.

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  •  30/03/2022. Cidades. Premio Marielle Franco, para a servidora e psiquiatra Kyola Vale.
    30/03/2022. Cidades. Premio Marielle Franco, para a servidora e psiquiatra Kyola Vale. Foto: Marcelo Ferreira/CB
  •  30/03/2022.  Cidades. Premio Marielle Franco, para a servidora e psiquiatra Kyola Vale.
    30/03/2022. Cidades. Premio Marielle Franco, para a servidora e psiquiatra Kyola Vale. Foto: Marcelo Ferreira/CB
  • Psiquiatra Kyola Vale recebe prêmio Marielle Franco por atendimento a grupos vulneráveis no Hmib
    Psiquiatra Kyola Vale recebe prêmio Marielle Franco por atendimento a grupos vulneráveis no Hmib Foto: Tony Winston/Agência Saúde
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