Preservar é preciso

Nos tempos em que era professor, promovi a exibição, em sala de aula, para os alunos, de trechos do clássico Deus e o Diabo na Terra do Sol, de Glauber Rocha. Como sempre ocorreu com Glauber, metade ficou fascinada, metade detestou. Para mim, isso não era o mais relevante. Penso que o contato com uma grande obra de arte sempre provoca alguma ressonância, imediata ou lenta. Tentava explicar que a nossa preferência estética não é uma bala de mentex: gosto ou não gosto e acabou a questão. A arte é uma linguagem, é um código a ser interpretado.

O importante era formular alguma argumentação para o apreço ou o desapreço. Isso provoca o embate e a reflexão. Lembrei que, em enquete promovida, com críticos, Deus e o Diabo na Terra do Sol foi indicado na condição de um dos 10 melhores filmes da história do cinema. Só pude exibir o filme graças ao esforço da família de Glauber para restaurar e converter o filme para o formato DVD, praticamente superado pelas novas tecnologias audiovisuais.

Se você quiser imaginar o que é um país sem memória, basta pensar em nossos momentos de lapsos, em que esquecemos o nome de um filme, de um lugar ou de uma pessoa. E a memória cultural está bastante ameaçada por uma ação deliberada de desenvestimento nas instituições de preservação da cultura. Um país sem memória é um país de cabeças cortadas, diria Glauber, sem referências, sem saber quem é, submetido a manipulações e dócil aos despotismos.

Recebi de presente um livro que tem como título uma espécie de manifesto nestes tempos de obscurantismo e de desmemória: Preservar é preciso, de Carlos Augusto Dauzacker Brandão, com a colaboração de Myrna Silveira Brandão. O livro documenta a atividade quase invisível, mas essencial, da restauração de obras seminais do cinema brasileiro: A hora da estrela, de Suzana Amaral, O homem que virou suco, de João Batista de Andrade, O país de São Saruê, de Vladimir Carvalho, entre outras.

É dramático ser autor de um filme, mas, em razão de condições inadequadas de conservação, vê-lo se deteriorar e ter a sensação de perder a obra para sempre: "Ter meu filme O homem que virou suco restaurado foi como ter o filme de novo, depois de considerá-lo perdido, tal o desgaste dos negativos originais", diz João Batista de Andrade, diretor de O homem que virou suco. E o nosso Vladimir Carvalho comenta no livro: "Gosto de imaginar que foi São Saruê, o santo sertanejo, que enviou arcanjas à terra com a missão de salvarem o meu filme da deterioração".

Puxemos a brasa para a nossa sardinha brasiliana. São Saruê é um clássico do documentário brasileiro, com o estilo contundente, seco e descarnado. É como se Graciliano Ramos se armasse de uma câmera e filmasse, a palo seco, as agruras dos sertanejos habitantes da região agreste situada nos vales do Rio do Peixe e do Rio Piranhas. Os dramas social e humano da estrutura agrária do Nordeste são escancarados em um misto de poema dramático e denúncia documental, como dizem os autores do livro.

Depois da recuperação do filme, Carlos Augusto Dauzacker Brandão presenteou com um DVD de O país de São Saruê, ao cineasta grego Costa Gravas, que registrou o impacto da recepção ao documentário de Vladimir: "Um filme forte, tocante, revolucionário. Enfim, maravilhoso!".

O livro de Carlos Augusto e Mirna não apenas documenta a batalha dos profissionais da restauração, mas também mostra a relevância de preservar a memória cultural. Contribui para ampliar a consciência sobre o nosso patrimônio cinematográfico e sobre estado de barbárie cultural em que vivemos. É inaceitável que os nossos filmes corram o risco de desaparecer por falta de cuidado, de investimento ou de consciência.