Brasília das antigas

O Correio ouviu histórias de amor, saudade e aventura de pessoas que viveram as primeiras décadas da capital federal, que, ontem, completou 62 anos

Talita de Souza
postado em 22/04/2022 00:01
 (crédito: Arquivo pessoal)
(crédito: Arquivo pessoal)

Há 62 anos, Brasília era inaugurada como a nova capital do país. Entre um presidente orgulhoso com o feito e centenas de trabalhadores que ergueram prédios e monumentos em tempo recorde, a história da cidade começava como uma folha em branco, onde cada morador poderia escrevê-la junto com o novo centro político do país.

As primeiras décadas da cidade foram como a adolescência de qualquer um: ousada, cheia de descobertas e primeiras vezes. Os pioneiros e descendentes foram os responsáveis por marcar a cidade com memórias e lugares que fizeram da capital um lar. De uma asa a outra, do lado de cá e do lado de lá do Lago, entre locais que não existem mais e a efervescência cultural da nova capital, o legado que a primeira geração da cidade deixou ressoa até hoje na cidade.

Ao Correio, alguns estreantes da cidade lembram como era no início de Brasília e revelaram o que mais sentem. Confira!

Encontro com o rei

A frase "quem quer, dá um jeito" nunca foi tão adequada para definir um dos momentos mais marcantes da vida de Orlando Trindade, 61 anos, na capital. Morador de Brasília desde os seis meses de idade, ele lembra da oportunidade de assistir ao show de ninguém mais e ninguém menos que o Rei do Pop Michael Jackson, em 1974. Na época, o cantor ainda era apenas um dos Jackson's Five, grupo que tinha com os irmãos, mas já era sucesso entre o público mundial.

Morador da 410 Sul, Orlando e os amigos souberam que a banda estadunidense se apresentaria no Ginásio Nilson Nelson. O problema era o valor do show, muito caro para os jovens. Entretanto, por um golpe do destino, a banda não pôde chegar no dia marcado e a gestão do evento decidiu abrir o espetáculo para todos os moradores de Brasília. Eis a oportunidade! Junto com os amigos, Orlando andou 6km a pé para ver a apresentação.

"Não tinha ônibus para lá. Fomos a pé, da 410 sul até o Ginásio. Eu tinha acabado de machucar meu pé, mas a gente não pensava em nada disso, a gente só pensava em ir. A apresentação marcou a minha vida. Eles estavam ali, cantando, dançando, em inglês. Caramba! Um amigo meu teve que me carregar nas costas, mas foi incrível", lembra Orlando aos risos.

Do acampamento para a vida

Um amor arrebatador. Oneide Soares, de então 19 anos, não imaginava que ao vir do Piauí com a família encontraria o amor. E foi assim, no meio de um acampamento improvisado para os construtores de Brasília, na década de 1970, que ela conheceu o mineiro José Roberto.

Ela estava instalada em uma espécie de kitnet na Candangolândia, no conhecido Acampamento dos Engenheiros. Logo ela conheceu, entre os vizinhos, o futuro namorado. Por um ano inteiro, os dois não se desgrudaram. "Éramos inseparáveis. Eu estudava à noite e ele me buscava. No tempo livre, íamos para o clube do grêmio, que era nossa diversão, a gente ia lá, de manhã era piscina e a tarde era churrasco. Íamos andando, não tinha tempo ruim", lembra.

A rotina, no entanto, não era suficiente. Oneide e José Roberto queriam dividir uma vida juntos. "Um ano depois a gente já estava casado. Foi amor. E amor que não coube só na gente. Em 1982 eu já estava ganhando meu primeiro filho", conta, emocionada.

Juntos, os dois construíram uma história que se confunde com a do acampamento. "Todo mundo era amigo de todo mundo. Todos viviam na casa um do outro. Tudo era festa. A gente fazia festa junina, barraquinha, concurso de quadrilhas", lembra com felicidade.

Hoje, Oneide afirma que não imaginava viver uma vida tão boa em Brasília. "E eu sinto falta. Hoje todo mundo tem que trabalhar, trabalhar e trabalhar e não tem tempo", diz. Mas ela ainda afirma que a capital continua sendo um lar para ela, os filhos, os netos e para o grande amor da vida dela, José Roberto. "Estamos juntos até hoje, graças a Deus, né?", diz aos risos.

As festas do Gilberto

Marco Jardim pode dizer que não só conhece a essência de Brasília, mas também é parte da própria. Ele foi um dos primeiros bebês a nascer na nova Capital, em novembro de 1960. O pai dele, de Diamantina (MG), veio para a cidade em 1959, um verdadeiro pioneiro.

É com esse espírito desbravador, herdado dos pais, que Marco viveu o início da cidade, cresceu com ela e teve uma vida social movimentada. "Até entrar de penetra nas festas a gente entrava. Se a gente estava na 111, conversando com as pessoas sabíamos que tinha uma festa na casa de alguém na 113, a gente ia, empolgado, chegar até lá e tentava entrar de penetra", lembra aos risos.

Ele lembra que o Gilberto Salomão era o point da época, onde conheceu vários amigos. "Sexta, sábado e domingo era o Gilberto Salomão. A gente sentava com todo mundo e sempre conhecia gente nova." Para ele, a maior riqueza de Brasília é viver com diferentes culturas.

"Eu sentava em uma mesa com três, quatro pessoas e perguntava de onde eram. Numa mesma mesa tinha quatro estados, quatro culturas e a troca de conhecimento era enorme. Isso é riqueza", lembra, empolgado.

Teatro que apresentava o Brasil

Do interior baiano, Antonilia Marra sempre aspirou descobrir o Brasil além dos limites de Barreiras (BA), uma cidade que, em 1960, oferecia apenas um viés da agricultura. Quando a tia e duas irmãs dela vieram a Brasília, ela avistou uma oportunidade de encontrar um novo lugar para alcançar o que ela nem mesmo sabia na época: viver a plenitude do mundo, da cultura e da poesia.

"Na minha cidade não tinha outras oportunidades. Minha vida ia ser muito diferente lá e eu não queria ficar na mesmice, queria crescer. Apesar de não ter muito conhecimento do que era aqui, eu queria e precisava fazer algo para viver outras coisas", lembra.

Ela contou ao pai que a cidade era uma oportunidade de trabalho e, apoiada por ele, chegou à capital aos 16 anos, em 1976, com as malas na mão e muita vontade de viver. Logo, Antonilia se encantou com o design da cidade, os ares modernos e o clima super agradável.

Entre passeios no Parque da Cidade e no Conjunto Nacional, Antonilia se satisfazia em ver que a vida poderia ser mais do que só trabalho. No entanto, foi apenas quando pisou no Teatro Nacional que teve certeza que encontrou o que buscava: um lugar que a levaria a conhecer o mundo e ser inspirada pela arte.

"Era o lugar que eu mais gostava de ir. Era uma oportunidade de ver coisas novas, de descobrir o mundo. Eu não conhecia a cultura e ali eu vi muitos espetáculos. Era um outro mundo, que eu não conhecia", conta emocionada.

Cerca de 42 anos depois, Antonilia ainda lembra do dia em que a vida dela foi marcada naquele Teatro. Ela assistiu ao espetáculo A Chorus Line, no qual Claudia Raia protagonizou uma história de superação de um grupo de artistas que corriam atrás do sonho de estrelar na Broadway.

Além de Cláudia, Chico Anísio e outros grandes atores da época foram assistidos por Antonilia. Ela lembra que o teatro também era palco de diversas exposições, até mesmo de plantas.

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    Antonilia Marra diz que encontrou em Brasília a conexão com as artes Foto: Fotos: Arquivo pessoal
  • Orlando Trindade e os amigos andaram 6km para ver um show dos Jackson's Five
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  • 10/03/2016. Crédito: Marcelo Ferreira/CB/D.A Press. Brasil. Brasília - DF. Vista geral do Setor de Diversões Norte, do Teatro Nacional Claudio Santoro e do Shopping Conjunto Nacional.
    10/03/2016. Crédito: Marcelo Ferreira/CB/D.A Press. Brasil. Brasília - DF. Vista geral do Setor de Diversões Norte, do Teatro Nacional Claudio Santoro e do Shopping Conjunto Nacional. Foto: Marcelo Ferreira/CB/D.A Press
  • 2020. Crédito: Pós-New/Divulgação. Diversão & Arte. Um show no Coreto do Gilberto Salomão. Foto do livro Pós-New Brasília - 1981-1989.
    2020. Crédito: Pós-New/Divulgação. Diversão & Arte. Um show no Coreto do Gilberto Salomão. Foto do livro Pós-New Brasília - 1981-1989. Foto: Pos-New/Divulga??o
  • Centro Comercial Gilberto Salomão, considerado o point dos jovens das primeiras décadas de Brasília
    Centro Comercial Gilberto Salomão, considerado o point dos jovens das primeiras décadas de Brasília Foto: Arquivo Público do DF

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