Ao longo de seis décadas, importantes figuras contribuíram para que a Universidade de Brasília (UnB) se transformasse em uma das mais respeitadas instituições de ensino da América Latina. Esta semana, o Correio resgata a trajetória de mulheres icônicas que deixaram ou estão construindo seu legado a partir da universidade. Na última quarta-feira, a jornada da professora Eliane Boroponepa Monzilar, da etnia Umutina, rumo ao inédito doutorado para uma mulher indígena, foi apresentada. Hoje, é a vez de reverenciar a jornalista belga Yvonne Jean, falecida em 1982, que chegou ao Brasil fugindo do nazismo e fez história na capital federal erguendo a voz em defesa da democracia, durante a ditadura militar. Os pesquisadores Rafael Pereira, pós-doutor em história pela UnB, e a historiadora Ana Paula Teixeira nos conduzem por esse itinerário de coragem e luta.
O ano era 1962. Enquanto os brasileiros comemoravam a conquista do segundo título na Copa do Mundo, a jornalista Yvonne Jean iniciava uma nova vida no Planalto Central. A convite do renomado antropólogo Darcy Ribeiro, ela chegou em Brasília para trabalhar no Centro de Extensão Cultural da UnB. Judia, ela e a família precisaram deixar a Bélgica anos antes, fugindo dos horrores do nazismo. "Em 1940 eles fugiram logo após a invasão do exército alemão e fizeram um périplo passando pela França, Espanha, Portugal, Cabo Verde até desembarcar no Rio de Janeiro", conta o pós-doutor em história pela UnB Rafael Pereira da Silva.
Versada em artes, literatura e línguas, Yvonne tinha uma grande erudição. No Brasil, após a chegada, tornou-se jornalista, embora fosse histologista de profissão. Ela começou a escrever para a imprensa carioca e se casou com o catarinense Abelardo da Fonseca, quando naturalizou-se brasileira. Trabalhando no Ministério da Saúde, no governo Vargas, começou a frequentar as rodas da famosa Livraria José Olympio, no Rio de Janeiro. Lá, Yvonne foi acolhida por ninguém menos que Graciliano Ramos. "Ele a criticou muito, mas a incentivou e lhe arrumou os caminhos para seguir a carreira jornalística, falando de temas como feminismo, educação, artes, cultura", explica Rafael.
Pouco tempo depois, ela aceitou o convite de Darcy Ribeiro e veio para a moderna e planejada cidade de Brasília. Naquela época, a cidade prometia não cometer os erros de outros importantes centros urbanos e até o país respirava ares de renovação com o novo berço político. Yvonne sentia nessa atmosfera uma grande promessa. "Penso que sua atuação na UnB, deixando o Rio de Janeiro, se deva muito na proposta que a Universidade tinha, dentro de uma concepção moderna, multidisciplinar e humanista. A perspectiva de participar de um projeto integral e pioneiro deve ter pesado muito na sua mudança de cidade", cita o especialista.
Dia a dia
A atuação de Yvonne no Centro de Extensão Cultural consistia em organizar cursos e palestras com artistas locais e de outros estados. Ela trabalhou, ainda, como tradutora e arte-educadora. No jornalismo, passou por importantes veículos de comunicação, entre eles, o Correio, onde assinava a coluna Esquina de Brasília, com observações sobre o cotidiano da nova capital. "Yvonne foi impondo sua presença no meio cultural e jornalístico. Isso, imagino, que fosse um diferencial na sua carreira, pois viajava bastante, trazia as novidades do velho mundo para o Brasil, estampava isso em suas colunas, quando escrevia sobre teatro, cinema, música", explica Rafael.
Além de fomentar as artes, Yvonne fazia reivindicações públicas, como o pedido para a conclusão ágil das obras do Teatro Nacional. Para o pesquisador, ela escreveu muito sobre Brasília, mas acabou não recebendo o devido reconhecimento por ajudar a desenvolver a vida cultural da cidade, até porque a narrativa desse período remete mais aos fundadores e arquitetos ou urbanistas, Juscelino Kubitschek, Oscar Niemeyer e Lúcio Costa. "Em outras palavras, uma história escrita no masculino. Mas, sem dúvida, Yvonne foi uma das mais importantes cronistas da cidade em seus anos iniciais, basta ler suas colunas, perceber seu envolvimento na vida cultural da cidade, sua passagem na UnB, suas traduções", reforça.
Para ela, a paixão pelo Brasil estava plasmada na universidade, que simbolizava os valores que lhe eram mais caros: a integração e pluralidade de pessoas. "Ela era apaixonada pela UnB, pela proposta, intelectuais envolvidos, ideais", diz a historiadora Ana Paula Teixeira. Dentre os legados que Yvonne deixa, com relação a Universidade, Ana cita dois: "O primeiro é ter mulheres trabalhando na fundação da UnB. Isso, por si só, é bastante relevante no sentido da representatividade. Não é sempre que temos mulheres envolvidas em projetos inovadores e ambiciosos. Em segundo lugar é a construção da imagem e divulgação da UnB. O trabalho que ela fez divulgando as inovações, inaugurações, conquistas, para um grande público, foi principalmente na sua coluna, através do Correio Braziliense", cita.
Momentos traumáticos
Infelizmente, os anos de chumbo marcaram a trajetória de Yvonne na capital do país. Depois do nazismo, a jornalista enfrentou a ditadura militar brasileira, em 1964. Nos meses seguintes, a UnB foi vítima de invasões militares que esmagaram o projeto inovador da instituição. Foram realizadas duas incursões durante o período em que Yvonne esteve na instituição, sendo que, na segunda, a jornalista fez uma cobertura detalhada, onde incentivava a publicação de uma carta de professores e o posicionamento dos estudantes.
Enquanto colegas, como o próprio Darcy Ribeiro, foram encaminhados para o exílio, Yvonne permaneceu em Brasília. "Ela restringiu seus trabalhos como tradutora e intérprete de personalidades que vinham do exterior participar de eventos. Ela fazia tradução simultânea, e ficava ligada, basicamente, ao Centro de Artes e Extensão, que era quem fazia ou organizava esses eventos ou dava apoio", explica Ana Paula. Mas, segundo a pesquisadora, não foi um período fácil: Yvonne foi presa duas vezes.
A primeira ocorreu logo após o episódio de invasão da UnB, quando foi detida sem justificativa. "A intenção era de que ela delatasse colegas de uma suposta célula comunista", recorda Ana Paula. De acordo com a especialista, a jornalista ficou detida por algumas semanas, sem explicação, e com vários de seus colegas — influentes em Brasília — tentando libertá-la. "Ela não passou por torturas físicas, mas escreveu um livro, chamado A Chave, em que aborda essa situação arbitrária em que as pessoas eram colocadas em uma detenção sem muita justificativa ou informação", diz.
Apesar de não ser alvo de investigações, a jornalista foi acusada de fazer parte do Partido Comunista Brasileiro (PCB), em 1969. "Ela foi acusada pela polícia política de ter um terreno em que supostamente faria treinamento de uma célula comunista terrorista. Ela negou, conseguiu vários atestados dizendo que não tinha nem construção", recorda Ana Paula. Mas, em 1971, ela foi considerada culpada. "Ela ficou em prisão domiciliar devido às suas condições de saúde. Estava muito fragilizada, tinha uma artrose grave, estava parando de andar", conta.
Em 1982, Yvonne faleceu, viúva, ainda residindo em Brasília. Seu filho, João Luís, doou todos os materiais do escritório da mãe para o Arquivo Público do DF, que disponibiliza para o Fundo Privado Yvonne Jean, para consulta local. A trajetória da jornalista coincide com momentos históricos e traumáticos na história do século 20, tanto que é objeto de estudo dentro da academia. "Diria que Yvonne é uma importante personagem da história do jornalismo no Brasil, mas além disso, é também uma personagem global, já que sua vida nos ajuda a entender outros contextos e eventos além do Brasil. É como se a história se confundisse com a vida dela", completa a especialista.
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