A sinfonia da Alvorada

Severino Francisco
postado em 01/05/2022 00:01

Ainda não fui ao Catetinho na reabertura depois da pandemia, mas irei em breve. Alguns amigos que foram ficaram comovidos com a beleza do lugar. Quando escrevi o livro Da poeira à eletricidade — Uma história da música em Brasília (ITS), mergulhei fundo na história da passagem de Tom Jobim e Vinicius de Moraes pelo Catetinho para compor a Sinfonia da alvorada. Essa imersão em busca dos fatos desfez vários mitos. Existe uma versão de que a Sinfonia da alvorada era uma obra de encomenda a pedido do presidente Juscelino Kubitschek, um projeto chapa-branca para marcar a inauguração de Brasília, em 21 de abril de 1960. É uma meia-verdade. Em primeiro lugar, a data não confere. Eles estiveram em Brasília em setembro de 1960, e a Sinfonia foi concebida para celebrar o primeiro aniversário de Brasília, em 21 de abril de 1961.

Não viajaram no Viscount, o avião presidencial, que, segundo a maledicência de Rubem Braga, costumava trazer um gárrulo bando de grã-finas para passear, com farta distribuição de caviar e champanha. Vieram no épico fusquinha do Tom. É possível imaginar as agruras de vencer 1,3 mil km de estradas precárias daqueles tempos. Embora fossem cariocas clássicos, frequentadores das boates da Zona Sul, eles queriam experimentar a aventura da cidade modernista a partir de uma visão da poeira e da conquista do Oeste.

Desde que o projeto de Brasília se tornou realidade, Tom se entusiasmou com a ideia de compor uma música para celebrar a criação da capital moderna "em plena selva", como ele acreditava, desconhecendo o cerrado. Queria narrar toda a epopeia dos primeiros dias, quando era chão bruto, até a conclusão, com a imponente arquitetura de Oscar Niemeyer.

Em 1958, depois de sofrer um acidente de carro, Vinicius conversou com Tom, pela primeira vez, sobre o assunto, em um hospital de Petrópolis (RJ). Naquele mesmo ano, vários temas da Sinfonia da alvorada foram compostos pelo maestro, conta Vinicius no artigo Brasília: o nascimento de uma cidade ou como se faz um poema sinfônico, incluído no livro Samba falado.

Na verdade, a ideia não era de JK; era de Oscar Niemeyer. Tom, Vinicius e Niemeyer haviam trabalhado juntos na peça Orfeu da Conceição, em que o personagem mítico baixa na favela. Niemeyer soprou para eles a ideia de criar um espetáculo de som e luz para Brasília, inspirado nas festas que se fazem na França.

Tom ficou animado e, pouco depois, Vinicius ouvia, no apartamento, em Ipanema, os primeiros temas saírem do piano do maestro: "Belos temas que o compositor fora criando à medida que a ideia brincava na cabeça. Mas logo surgiram as primeiras vozes da reação. — Vai ganhar um cartório... Antonio Carlos, que não é de cartório nem nada, arrefeceu", conta Vinicius em Samba falado.

Tom ficou muito magoado com a versão de que estava fazendo uma obra chapa-branca encomendada por JK e adiou o projeto à espera de "dias mais inteligentes", nas palavras de Vinicius. Eles chegaram em 1960 com o convite de JK, sob o apelo de Niemeyer. Em suma: o pedido presidencial da Sinfonia só ocorreu depois de a composição nascer do desejo do maestro e de ser uma obra em progresso. No entanto, foi o empurrão que a dupla precisava para transformar o desejo em realidade.

Embora a passagem por Brasília tenha sido fugaz, pois só permaneceram 10 dias no Catetinho, ela teve forte impacto de brasilidade em Tom e em Vinicius. O maestro chegou a comprar um lote no Lago Sul e, quando vinha a Brasília, gostava de ver, ao longe, as luzes do Plano Piloto. Vinicius encomendou a Oscar Niemeyer o projeto de uma casa em Petrópolis, inspirada no Catetinho, nos tempos em que era casado com Maria Lúcia Proença.

Tom se embrenhava na mata do Catetinho para conversar com as perdizes e as jaós. Vinicius ficava na varanda apreciando "a silhueta sobrenatural da cidade na linha extrema do horizonte, recortada por auroras e poentes de indizível beleza". Tom dizia que esse era o lugar mais antigo da Terra. Vinicius escreveu que o planalto central tem uma proximidade com o infinito. Além da Sinfonia, eles compuseram, no Catetinho, a obra-prima Água de beber. Depois daquela estada de 10 dias, Tom e Vinicius se tornaram mais brasileiros. Eles beberam na fonte de Brasília.

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