Sempre que passo pelo Palácio do Itamaraty ou pelo Espaço Cultural Renato Russo da 508 Sul me lembro do Embaixador Wladimir Murtinho. Renato Russo dizia que o mundo do Congresso Nacional e dos Palácios era, fisicamente próximo e visível, mas, na verdade, tão inacessível quanto o castelo de Kafka. E, de fato, no entanto, Murtinho transitou, naturalmente, pelas duas Brasília: a do poder e a civil.
Ontem, ele recebeu uma justa homenagem em evento no Itamaraty, com depoimentos de embaixadores e de pesquisador da obra de Niemeyer. Existe um precioso depoimento de Murtinho, registrado no Arquivo Público do DF, que servirá de fonte para essa evocação.
Ele nasceu na Costa Rica. O pai era diplomata e chegou a ser ministro do país. Em 1958, Murtinho chegou ao Brasil. Logo, a carreira passou a estar muito ligada à cidade nascente. Foi designado para coordenar a comissão do Ministério das Relações Exteriores encarregada do projeto e da construção do Palácio do Itamaraty.
O Palácio do Itamaraty parece flutuar em cima do espelho d'água com os jardins de Burle Marx. É um dos edifícios mais admiráveis de Brasília, pela integração e o equilíbrio entre a arquitetura modernista, a arte e a funcionalidade.
E isso só aconteceu graças ao conhecimento, à sabedoria e à habilidade de Murtinho. Ele considerava o Itamaraty um grande museu da arte brasileira, mas um museu onde as obras de arte não estão amontoadas; estão plenamente integradas à função de cada espaço. Em depoimento, o embaixador Rubens Barbosa conta que, para Murtinho, não havia coisas impossíveis.
Quando Oscar Niemeyer começou a fazer o planejamento, Murtinho chamou a atenção para que ele tivesse a colaboração com Burle Marx: "É necessário dizer que nesse tempo Roberto Burle Marx havia brigado com Juscelino Kubistchek e, em consequência, tinha se estremecido com Niemeyer", conta Murtinho em depoimento ao Arquivo Público do DF: "Por esse motivo, ele não veio no começo de Brasília. Porque o nosso Burle Marx era muito desbocado, ele se queixou aos jornais de que não haviam pago pelo trabalho que ele tinha feito nos jardins da Pampulha, em Belo Horizonte".
Graças a essa mediação, Burle Marx pôde criar os magníficos jardins na parte externa, no salão de cerimonial e no topo do prédio, que propiciam uma das mais deslumbrantes visões panorâmicas de Brasília. O arquiteto Frederico Holanda considera o Itamaraty o edifício mais importante da historia da arquitetura. Murtinho não desenhou, mas comandou todo o processo de construção do prédio com sugestões valiosas.
Além disso, teve grande relevância na vida cultural da Brasília civil. Convenceu o maestro Claudio Santoro a retornar da Alemanha para Brasília e a criar a Orquestra Sinfônica do Teatro Nacional. Murtinho era, realmente, uma pessoa apaixonada pela cultura. Criou o Balão de Ensaio e o Centro de Criatividade da 508 Sul (que se transformaria em Espaço Cultural Renato Russo da 508 Sul).
Em plena ditadura, incentivou o movimento de teatro amador na cidade, que chegou a ter mais de 50 grupos. Lembro que, diversas vezes, eu estava assistindo a peças no Teatro Galpão ou no Galpãozinho e, de repente, com o espetáculo em andamento, percebia a silhueta dos dois vultos se movendo na escuridão e se acomodando no chão. Era o embaixador Murtinho e sua mulher.
Aos que consideravam aquela atitude excêntrica, Murtinho contrargumentava: "É no teatro amador que pode surgir algo experimental. Não é no teatrão. Capital não pode ser passiva; capital tem de irradiar".
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