Nelson e o Anti-Nelson

Correio Braziliense
postado em 24/06/2022 00:01

Ganhei de um amigo 150 exemplares de O Pasquim, o jornaleco desabusado que funcionou como oxigênio de inteligência e de humor durante os chamados anos de chumbo do regime militar. Estava passeando os olhos aleatoriamente por algumas edições, quando me deparei com uma preciosa entrevista, datada de abril de 1980, sob o sugestivo título de : "Alguns idiotas da objetividade entrevistam Nelson Rodrigues".

Nós desmoralizamos a palavra "gênio" na pós-modernidade. As pessoas dizem: "Comprei um boné genial" ou "tomei uma cerveja genial". Mas Nelson é um dos poucos que merece efetivamente ser chamado de genial, pois, com todas as contradições, humanas, demasiado humanas, paira em um plano de absoluta excepcionalidade. Ele era um dramaturgo da cabeça aos sapatos; Nelson era puro drama nos palcos e na vida.

É bastante comum que, durante os regimes de exceção, os oportunistas se alinhem com os poderosos para obter vantagens. Não era esse o caso de Nelson. Ele apoiou o regime militar de 1964 e, por uma ironia trágica do destino, o seu filho Nelsinho se tornaria militante de esquerda, prisioneiro e torturado.

Por causa disso, Nelson era execrado pelas esquerdas. Em certa ocasião, Nelson viajou até Porto Alegre para participar de uma noite de autógrafos e só apareceu um leitor para comprar o livro e pegar a sua assinatura: "Os intelectuais me tratavam como uma úlcera", reclamou Nelson.

A entrevista da turma do Pasquim com Nelson parece uma peça do nosso profeta do óbvio, com o drama se misturando ao patético e ao humor. Não se fazem mais entrevistas assim. E a conversa esquenta mesmo quando desliza para o campo da política e das relações de Nelson com o regime militar.

Ao ser indagado por que não fez as pazes com Alceu Amoroso Lima antes da abertura política, Nelson responde com uma pergunta provocativa: "Por que houve o grande terror na Rússia? Por que mataram 12 milhões?". E o chargista Jaguar replica: "Por que o senhor está dizendo isso para mim? Não sou comunista, tenho raiva de comunista! Eu sou é humorista!"

Fausto Wolff faz uma pergunta que eu gostaria de fazer: "Honestamente, Nelson, não consigo entender uma coisa: como é que você pode apoiar um regime que quis matar seu filho? Meu Deus do céu!. E Nelson, obstinadamente: "Eu salvei meu filho!". Fausto comenta, teatralmente: "E quantas centenas de filhos você não conseguiu salvar?"

Nelson (com os braços em cruz): "Agora sou responsável por todas as atrocidades que fizeram!". Nelson se defende, alega que percorreu os gabinetes militares acompanhado das esposas de Zuenir Ventura e Hélio Pellegrino para pedir que eles fossem soltos.

E, neste ponto, entra uma equipe do Fantástico para entrevistar Nelson e não entende nada: "Sabe por quê? Porque gozei daquelas passeatas sem um preto, sem um operário, sem um desdentado, passeatas granfinas da classe dominante". Senta-se arquejante. A esposa de Nelson fala com voz severa: "Ele não pode se cansar muito. A TV Globo está esperando".

E Nelson: "Vamos fazer uma entrevista... Isso não tem sentido. É um tribunal, estou sendo julgado..." Nelson era contundente e, ao mesmo tempo, muito terno. Ao fim da entrevista, ele abre os braços e diz: "Meu doce Jaguar, você sempre foi o anti-Nelson Rodrigues! Não faça isso. Me tenha simpatia, tá bem?"

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