No quintal do Bandeira

Severino Francisco
postado em 26/06/2022 00:01

Já imaginou participar de um programa cultural chamado O Quintal do Bandeira. No caso, é o poeta pernambucano Manuel Bandeira. Há duas semanas, o poeta e ensaísta brasiliense Francisco K tomou um avião até o Recife, onde nasceu em 1961, para lançar e debater seu livro Mangue mundo (Sigla Viva), que estabelece conexões inusitadas entre Chico Science, Josué de Castro e João Cabral de Melo Neto. O que liga os quatro pernambucanos ilustres é a poética do mangue.

Além de Francisco K, a conexão Brasília-Recife n'O Quintal do Bandeira reuniu DB Mabuse, designer e um dos pensadores do Mangue Beat; Roberto Azoubel, coordenador de Literatura da Secretaria de Cultura de Pernambuco; e Marília Mendes, coordenadora do projeto Pasárgada. As chuvas que se abateram sobre o Recife prejudicaram o lançamento do livro, mas, em compensação, a live foi excelente.

Ver Chico Science e a Nação Zumbi, pela primeira vez, na Esplanada dos Ministérios, foi um dos acontecimentos mais memoráveis de minha vida. De repente, todas as luzes se apagaram, e a banda tomou de assalto a cena da cidade espacial como se fosse um ataque avassalador de cangaceiros.

Só que, em vez de fuzis, eles empunhavam guitarras, baixos, tambores e violência poética. A sensação era a de estar envolvido por um maracatu atômico, que atropelava tudo que encontrasse pela frente.

Era uma nova tropicália, uma tropicália pernambucana, mais dramática, mais frontal e mais contundente. Em uma das canções, Chico canta: "Me desculpe, senhor, me desculpe, mas essa aqui é a minha nação". Pensei: "Sim, eu pertenço a essa nação zumbi". Mas vamos à live.

Antes do início dela, fomos brindados com um magnífico clipe em que Francisco K recita trechos do poema O cão sem plumas, de João Cabral, remixados com imagens do Recife e ao som da composição instrumental Salustiano song, de Chico Science e Nação Zumbi. Josué de Castro alerta, com palavras que ecoam no Brasil atual, em que o presidente se jacta de o Brasil produzir alimentos para mais de 1 bilhão de pessoas no mundo, enquanto cerca de 30 milhões de brasileiros padecem de fome no nosso quintal: "Todo extraordinário progresso do mundo está comprometido por causa do problema da fome".

A leitura de Francisco K acompanha a música de Chico & Nação Zumbi e acelera o ritmo das palavras, quase como se fosse uma embolada, transformando o poema de João Cabral em uma letra de uma canção do manguebeat: "Aquele cão está vivo na memória/Como um cão vivo dentro de uma sala/Debaixo dos lençóis, da camisa, da pele/O que vive é agudo/O que é vivo fere".

Com instinto e intuição velozes de artista, Chico captou no ar, em contato rápido, o pensamento de Josué de Castro e a poesia de João Cabral. Mas Chico imprime um outro sentido aos homens-caranguejos de Josué de Castro e aos homens-lama de João Cabral. Eles se transformam em mangue-boys e mangue-girls, que se descolam da opressão e expandem a consciência rumo ao ciberespaço ou ao cosmos.

Na passagem dos 100 anos da Semana de Arte Moderna e dos 30 anos do manguebeat, foi um candango-pernambucano que emprestou novos olhos para celebrar o último ciclo do modernismo no Brasil, que mexeu com as camadas tectônicas da música, do comportamento, do cinema, do design, da política e da moda. "Com Pernambuco debaixo dos pés/E a mente na imensidão", cantaria Chico Science.

P.S.: Para quem se interessar, a live está disponível na internet, basta clicar "Antenas do mangue do meu quintal: Chico, Josué e Cabral". 

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