crônica

A música que salva

Mariana Niederauer
postado em 04/07/2022 00:01

Vivemos a ascensão de uma nova linguagem. O mundo é, já há algum tempo, audiovisual. Por ironia, essa realidade que se impõe não tem nos tornado necessariamente mais próximos pelo toque ou pelos encontros face a face. Mas tem a capacidade de nos apresentar a uma potência que antes talvez alcançássemos apenas num território abstrato, filosófico.

O streaming nos oferece um cardápio variado de opções, entre filmes, séries, documentários e reality shows. Em casa com os Gil é uma mistura desses dois últimos gêneros. Tenho assistido em doses homeopáticas, para retardar ao máximo o fim. É claro que, como uma fã da produção do músico, sou suspeita para falar, mas a delicadeza de estar na rotina de uma família diversa e acolhedora como a dele é inspiradora.

A percepção da presença da câmera é evidente. Existe uma certa aura de produção incrustada em algumas das cenas. Isso, no entanto, não retira a potência daquele encontro familiar e o desejo comum que uniu a todos ali. Para quem ainda não teve a oportunidade de conhecer o reality, trata-se de um filmagem do retiro da família Gil em Araras (SP), durante a pandemia, com o objetivo de montar o repertório de uma turnê pela Europa. Avós, filhos e netos juntos discutem quais deveriam ser as canções selecionadas, e em rodas de conversas cada um dá a sua opinião.

Um dos diálogos que mais me tocou até o momento é o de Bento Gil com o avô e com o pai, José. "Esse é o assunto que, tirando o futebol, que é o meio de comunicação que a gente divide, que a gente gosta, é o assunto que a gente vai mais longe. É uma música que me faz refletir muito. Algo que eu acho que as pessoas em geral pensam muito pouco, mas que é um assunto inevitável. Minha música é: Não tenho medo da morte (2008)", diz Bento.

O avô responde: "Eu me lembro de ser surpreendido alguns anos atrás, você ainda bem menor, você vir me contar de como batia em você essa coisa de refletir sobre a morte. Isso me aproximou muito mais ainda de você". Em seguida, o pai de Bento se emociona ao comentar: "A gente ter crescido podendo estar perto de você, podendo estar perto da sua obra, é uma aula de vida. São tantos assuntos, tantas coisas sensíveis, tanta coisa que a gente vai acompanhando. É um privilégio que a gente tem, de crescer ouvindo canções que despertam na gente questões que talvez nessa idade o Bento não teria despertado."

Também tocado pelo relato de duas gerações, Gil, sempre certeiro, resume: "Mas acho que é isso mesmo, né, é o papel da arte, o papel da poesia: revolver esse terreno do sentimento, da percepção da presença do espírito. Esse é o papel da arte". Na sequência, um corte para a cena da família cantando junta os versos da música de Bento. "Não tenho medo da morte / Mas sim medo de morrer / Qual seria a diferença / Você há de perguntar."

E, por falar em streaming, esse pode ser até o tema de outra crônica: quem sabe uma música de Gil não me salvasse de um ataque do Vecna?

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