Em algumas ocasiões, compartilhei por aqui minha admiração por Quino e sua icônica e feminista personagem Mafalda. O quanto ela contribuiu para abrir os horizontes e espaços de (auto)reflexão desde a infância. Da tirinha do livro de português das séries iniciais do ensino fundamental ao ex-libris que marca as páginas dos livros da minha estante, lá está ela, fruto da imaginação e do esforço criativo do cartunista argentino.
Ontem, o doodle do Google lembrava e homenageava o artista por seu 90º aniversário e foi irresistível escrever mais uma vez sobre os dois. Há dois anos, Quino se foi, mas deixou um marco atemporal com sua obra, que certamente atravessará ainda mais gerações. Na ilustração do navegador, ele aparece como tantas vezes retratou a menina inteligente e astuta em seus quadrinhos: reflexivo, em frente a um globo terrestre.
A sagaz moradora do bairro de San Telmo, em Buenos Aires, tem até um endereço em sua homenagem na capital argentina. Na Rua Chile, número 371, pertinho da antiga casa de Quino, uma placa avisa: "Mafalda viveu aqui". É lá, na esquina com a Rua Defensa, que fica a escultura em tamanho natural da personagem, ponto turístico dos mais procurados na cidade.
Com sua trupe — o irmão Guille e os amigos Felipe, Susanita, Miguelito e Manolito —, Mafalda mostrou ao mundo verdades duras, que todos sabem, mas de que poucos se dão conta. "Como sempre: o urgente não deixa tempo para o importante", pensava. Dúvidas daquelas de deixar qualquer pai sem resposta: "Certo, mas com que idade é preciso começar a maquiar o espírito?" Ou que exigem um tempo para se recuperar após o baque inicial: "Mamãe, quando você conheceu o papai, sentiu que as chamas da paixão a devoravam, ou só davam uma tostadinha?".
Em muitos países, a obra chegou a circular com restrições e não era recomendada para crianças. Foi o caso do período de ditadura franquista na Espanha. "Temos homens de princípios, uma pena que nunca os deixem passar do princípio", escancarava a menina. "Todos acreditamos no país, o que não se sabe a essa altura é se o país acredita em nós."
Como muitos artistas que atingiram fama semelhante, Quino era avesso às câmeras e a entrevistas. Chegou a pendurar uma placa em seu escritório avisando sobre suas motivações: "Por motivos de timidez, não se aceita reportagem de qualquer tipo".
Ele contava ainda que optou pelo desenho em razão da dificuldade em falar. Nisso me identifico com ele. Consigo me expressar melhor pelas palavras escritas do que pelo discurso oral. Só gravo áudios nos aplicativos de mensagem eletrônicos quando estou muito irritada ou sem tempo, e quase sempre me arrependo e penso que deveria ter usado a escrita.
Foram quase duas mil tiras publicadas estreladas por Mafalda, entre 1964 e 1973. Com o tempo, chegou até a se retratar vestido de prisioneiro, em roupa estampada por desenhos, em alusão à sensação de estigma ligado aos personagens que por tantos anos desenhou. Como compartilha Mafalda em um de seus momentos de melancolia, tem dias que a gente "quer viver sem perceber".
Mas, em seguida, provavelmente surgiria Susana, para levantar o ânimo no cômodo com um tantinho de arrogância: "Preciso que você me dê um conselho, Mafalda. Diga-me, o que posso fazer com uma personalidade tão interessante como a minha?"
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