A corrupção das palavras

Correio Braziliense
postado em 23/07/2022 00:01

O cineasta Glauber Rocha e o jornalista Paulo Francis se conheceram por meio de um duelo. Francis era crítico de teatro no jornal Última Hora, no Rio, e escreveu um texto desancando o trabalho desenvolvido pelo diretor Martim Gonçalves em Salvador, a quem acusava de provincianismo.

Glauber tinha pouco mais de 20 anos, era ilustre desconhecido fora de Salvador, mas tomou as dores de Martim, publicou o artigo Tope a parada, mister Francis, no Suplemento Dominical do Jornal do Brasil, editado por Reynaldo Jardim. E provocou Francis a conhecer o trabalho de Martim em Salvador: "Por sermos baianos não somos cretinos como você pensa. A fonte da juventude não está nos bares e muito menos nesta angústia diária de ler jornais estrangeiros e aspirar Nova York ou Paris e se frustrar novamente em sua profissão de crítico, que seria digna caso fosse honesta e interessada no seu país. Como pode, então, uma pessoa acusar outra de diletante e alienada, se ela mesma acha que o centro do mundo é o Rio ou São Paulo".

Francis considerou o artigo tão bem escrito que não respondeu e ficou amigo de Glauber até o fim da vida. Imagine nos dias de hoje alguém que se torne amigo de outro por causa de uma divergência cultural ou política. É algo completamente improvável. Lembrei do embate por causa das falsas polêmicas que nos assolam. No caso de Glauber e Paulo Francis estava em jogo o debate ainda atual sobre a dominação dos grandes centros urbanos sobre os centros regionais.

Nós temos uma tradição de grandes polemistas: Oswald de Andrade, Gilberto Freyre, Nelson Rodrigues, Joaquim Nabuco, Rui Barbosa, José Guilherme Merquior. A campanha de Nabuco pela abolição é memorável.

E, no campo da música popular, o duelo de Wilson Batista e Noel Rosa girou em torno do tema da malandragem: "Malandro é palavra derrotista/que só serve pra tirar todo valor do sambista/proponho ao povo civilizado/não chamar de malandro/e sim de rapaz folgado".

E, para puxar para o presente, é possível serem chamadas de polêmicas as batalhas poéticas dos rappers nas praças. Elas compõem um balé de inteligência, improviso e verve. Mas não é possível dizer o mesmo sobre as falsas pendengas atuais. A imprensa tem feito um trabalho muito importante durante a pandemia. Se não fosse ela, aliada à ciência, a situação seria ainda mais grave.

No entanto, parece-me que alguns colegas se equivocam em qualificar de "polêmicas" atitudes e manifestações que são expressões apenas de ignorância, falta de educação, tolice, insciência, estupidez ou asnice. Com isso, papalvos de carteirinha são alçados à condição de grandes polemistas. Ganham o status de grandes intelectuais públicos.

Eu pergunto: o que há de polêmico em praticar racismo, desmontar estruturas de fiscalização do meio ambiente, atacar as mulheres covardemente, negar a singularidade dos povos indígenas, fazer manifestações contra a democracia ou recusar-se a usar a máscara em uma pandemia? O que tem de polêmica a campanha negacionista contra as vacinas? O que tem de polêmica na campanha contra as urnas eletrônicas, sem nenhuma prova. Nada. É, simplesmente, uma mentira perigosa.

Contendas que não tenham nenhuma ideia em jogo não podem ser nomeadas de polêmicas. Comportamentos delituosos de algumas autoridades são chamados pelo eufemismo de "erráticos". Precisamos reabilitar a dignidade das palavras. O primeiro passo é chamar os fatos pelo seu nome verdadeiro. Como diria o polemista Rui Barbosa: "Em vez de evoluir, retrogradamos".

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