Sou Severo

Correio Braziliense
postado em 26/07/2022 00:01

Nos anos 1980 e 1990, inspirado pelos ídolos da juventude Oswald de Andrade, Paulo Francis, Mario Faustino e Torquato Neto, eu descia o sarrafo, instalado na condição de crítico. Adotei o lema de Faustino "Piedade matou as minhas ninfas".

Eu me achava investido da missão de promover uma operação de saneamento básico na cultura. No ápice da arrogância, participei de um debate sobre poesia brasileira e desferi provocações contra nada menos do que Carlos Drummond de Andrade. Disse que o genial poeta de Itabira deveria ser tombado pelo Iphan.

A esta altura, indignado com a heresia, um poeta distrital resolveu tomar as dores de Drummond e partiu para cima. Os organizadores do evento seguraram o vate possesso e tentaram me convencer com um argumento forte, o poeta distrital tinha três pontes de safena e não poderia se aborrecer. Quase teve um infarto. Mas, ao fim, todos se salvaram sem maiores sequelas. Até o americanófilo Paulo Francis admitiu que, se escrevesse em inglês, Drummond seria reconhecido com o status de maior poeta da segunda metade do século 20.

Ao ler a narrativa infantojuvenil A fabulosa morte do professor de português, de Lourenço, Ed. Autêntica, me senti tentado a entrar com um processo para cobrar direitos autorais. Com muita verve, Cazarré reconstitui, de forma satírica e sarcástica, muitos episódios de minhas aventuras e desventuras de crítico literário da taba.

Claro que se trata de uma obra de ficção, engenhosa e divertida, que transcende as circunstâncias brasilianas, mas qualquer semelhança com personagens de carne e osso não é mera coincidência. O personagem principal é o crítico literário e professor Severiano Severo, titular da coluna Fogo Cerrado, do Correio Popular, implacável com qualquer livro da cidade.

Além de mim, Dona Maria da Anunciação, gente fina, é, obviamente, a inesquecível Maria da Conceição, diretora da Biblioteca da 508 Sul, que já nos deixou. A delicada e premiada escritora de livros infantojuvenis Estela Maris se transforma na grandalhona Strela dos Maris Rainha, que ameaça resolver no braço as pendências culturais com o crítico.

Laurentino Floresta, dono da extinta Livraria Esquina da Palavra, é Lourenço Flores. "Ele era jornalista", conta o personagem Tédio. "Diz que abandonou a profissão para ficar mais perto dos livros, que adora. Mas não é verdade. Foi expulso pela Comissão de Ética do Sindicato dos Jornalistas. Em dois anos de profissão, sofreu 10 processos por calúnia e difamação."

Segundo a bem humorada ficção de Cazarré, alunos queriam mudar de classe, de cidade e de país por minha causa. E os escritores da cidade entravam em estado de choque só de ouvir o meu nome. De minha parte, sempre me diverti imensamente com as polêmicas. Não tenho, nem abjuro o que escrevi, mas não faria do mesmo jeito, às vezes, tão desatento ao outro.

Assistir ao fim da vida de Paulo Francis, amargurado, frustrado e infeliz, teve impacto sobre mim. Não quero ser refém do meu personagem. Livrei-me dele. Não importa que eu seja menos do que meus ídolos da juventude. O que me cabe é ser autêntico, é viver a minha singularidade até o fim, com toda a coragem, de maneira irreparável.

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