CRÔNICA

Crônica da cidade: Segurando pra não cair

Nos últimos anos, acho que o bordão do Jô provavelmente se aproximava mais ao do meu avô

Mariana Niederauer
postado em 08/08/2022 10:18 / atualizado em 08/08/2022 00:00
 (crédito: Globo/ Rogério Lorenzoni)
(crédito: Globo/ Rogério Lorenzoni)

Meu saudoso avô tinha um bordão. Quando atendia a uma ligação ou recebia alguém em casa que lhe perguntava como andava a vida, ele repetia, como um mantra: "Tô aqui, segurando pra não cair". Gaúcho de Santa Maria, carregou até o fim da vida o sotaque forte.

Vez ou outra deixava escapar um "báh…" ao exprimir surpresa. O "tchê" era mais raro. Também o acompanhava fielmente a cuia de chimarrão. Durante anos, participou de encontros semanais com amigos que compartilhavam a mesma tradição e se reuniam para colocar os "causos" em dia.

Eu me lembrei dessa peculiaridade da relação com o patriarca dos Niederauer por causa de outra lembrança saudosa: o tradicional "Beeeijo do gordo" das madrugadas de Jô Soares. Conheci muito pouco do ator, do artista plástico e, também, preciso caminhar por muito chão na obra do escritor, mas acompanhava com empolgação o apresentador desenvolto, hábil e sarcástico.

Quando começamos, logo nas primeiras horas do dia, a cobertura da partida de Jô, as pautas surgiam numa vazão infindável, retrato do legado robusto deixado pelo jornalista. As lembranças e as homenagens da família, de amigos, de colegas de trabalho e de tantos admiradores. O resumo da obra na literatura, nas artes plásticas, na televisão.

Ah, e o sofá. Difícil não conhecer alguém que tenha se sentado diante dele para conversar sobre qualquer tema que fosse. Músicos, atores, humoristas, cantores, escritores, diretores, políticos… A concorrência era grande para encontrar um espacinho que fosse naquela espécie de divã.

Como não se lembrar da emblemática interpretação de Welder Rodrigues, da companhia de comédia brasiliense Os Melhores do Mundo, no Programa do Jô. "A vida é uma caixinha de surpresas", repetia o narrador, enquanto Joseph Climber resistia bravamente a toda e qualquer desgraça que o atingisse. E a plateia (e os espectadores) caindo na gargalhada. As mais marcantes, claro, eram a do próprio Jô e de Bira, um dos músicos da banda do programa.

Nos últimos anos, acho que o bordão do Jô provavelmente se aproximava mais ao do meu avô. Uma dose diária de humor, mas com uma pitada de melancolia, que deixava transparecer o descontentamento com algumas das dificuldades trazidas pelo tempo marcado no corpo. Esse ciclo é natural, mas carrega consigo também a vocação da crueldade. Eles partem e deixam a todos nós por aqui, segurando para não cair.

 

Notícias pelo celular

Receba direto no celular as notícias mais recentes publicadas pelo Correio Braziliense. É de graça. Clique aqui e participe da comunidade do Correio, uma das inovações lançadas pelo WhatsApp.


Dê a sua opinião

O Correio tem um espaço na edição impressa para publicar a opinião dos leitores. As mensagens devem ter, no máximo, 10 linhas e incluir nome, endereço e telefone para o e-mail sredat.df@dabr.com.br.

Os comentários não representam a opinião do jornal e são de responsabilidade do autor. As mensagens estão sujeitas a moderação prévia antes da publicação